A CIÊNCIA DO ERRO
Sobre Verdades,
Veracidade e Realidade Objetiva
Parte
1: Uma resposta a Marcelo Gleiser
Dedicado ao meu amigo Edson Lopes
mas não sobre as mesmas coisas.
Albert Einstein
ENDEREÇAR A VERDADE CONSISTE EM
CONHECER OS FATOS, NÃO AS OPINIÕES... E é exatamente isso que praticamos todos
os dias no campo da Justiça, baseado no vigoroso e inefável princípio do onus
probandi... Neste artigo em especial citarei
muitos dos homens notáveis sobre os ombros dos quais este anão que vos dirige a
palavra subiu para ver mais longe... muito mais longe!!!
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Einstein
disse com insuspeita ironia que somos todos ignorantes, mas não sobre as
mesmas coisas; e poderíamos ainda apendar o célebre pensador ashkenazi destacando
a escala da ignorância e a gradação do erro associado ao feito - ou desfeito,
ou defeito! Somos todos ignorantes, sim, mas não sobre as mesmas
coisas, nem no mesmo grau...
Certa feita, o físico Isaac
Asimov recebeu uma carta de um licenciado em literatura inglesa que muito vem
ao caso:
Um jovem especialista em literatura inglesa, tendo me citado, passou a me repreender severamente sobre o fato de que, através dos séculos, as pessoas pensavam ter compreendido finalmente o universo, e através dos séculos ficou provado que estavam errados. Isso significava que a única coisa que podemos dizer sobre o nosso conhecimento ‘moderno’ é que ele está errado. - Isaac Asimov (A Relatividade do Erro; 1989)
Asimov brilharia em sua resposta:
Quando as pessoas pensavam que a Terra era plana, estavam erradas. Quando as pessoas pensavam que a Terra era – ‘exatamente’ [grifo meu] - esférica, estavam erradas. Mas, se você considera que ‘pensar que a Terra é esférica é tão errado quanto pensar que a Terra é plana’, então a sua visão está mais errada do que as duas juntas. - Ibidem
Ele explicaria ainda que as
pessoas sempre buscam certezas ou negações absolutas. Agrego que as pessoas
estão platonicamente aprisionadas em uma fantasiosa expectativa de perfeição;
de forma que se alguma coisa não é "exatamente" ou
"absolutamente" perfeita então ela estará totalmente errada; e isso
não nos leva a nada. Existem gradações de erros, sentenças verdadeiras e falsas,
e a veracidade de proposições pode conter um grau de força; e a ostentação de
verdades absolutas somente serve ao propósito de turvar a visão crítica diante
da realidade objetiva.
Quando um suposto divulgador
científico como Gleiser [o Marcelo] chama pejorativamente o honesto e abnegado
esforço humano na busca pelo conhecimento de "objetivismo", ele está
alimentando a confusão reinante, e acirrando o falacioso debate sobre razão
versus emoção, ou sobre conhecimento versus sensibilidade.
"Objetivismo" é
particularmente abjeto, irresponsável, e injustificável, partindo de alguém que
se declara comprometido com o conhecimento e seus critérios de validez; sempre
lembrando que um tapa na cara da racionalidade corresponde a um tapa na cara da
verdade... Podemos sim endereçar a verdade, sendo este o
propósito da investigação científica - muito embora não seja a sua fonte de
inspiração... Somos inspirados pela beleza da vida, por nossas paixões, amores,
e pela devoção a estes amores e princípios. E aqui discordo de outro conceito
da “ilha” de Gleiser (A Ilha do Conhecimento – Os Limites da Ciência e A
Busca Por Sentido; 2015), quando o autor afirma que a motivação científica
seja a "ignorância". Na verdade, pretendemos escrever a poesia da
realidade - e por amor!
Aquele que se sabe profundo esforça-se por ser claro; aquele que gostaria de parecer profundo à multidão esforça-se por ser obscuro. Porque a multidão acredita ser profundo tudo aquilo de que não pode ver o fundo. Tem tanto medo! Gosta tão pouco de se meter na água! - Friedrich Nietzsche (A Gaia Ciência; 2012)
Sob o pretexto de uma tal
"verdade absoluta", Gleiser questiona a existência de verdades, e da
própria análise objetiva sobre a veracidade de proposições - assim como o
professor de literatura de Asimov. Gleiser alega procurar "sentido em sua
vida", disparando contra a CIÊNCIA e contra o conhecimento... Mas não
demonstra mais do que suas próprias e covardes limitações. Aliás, Galileu,
célebre “cavaleiro do apocalipse”, salvaguardaria o vigor de sua lucidez e à postos, tendo escolhido ridicularizar crendices
infundadas, as mesmas professadas por Gleiser - quando disse que:
Io stimo più il trovar un vero, benché di cosa leggiera, che `l disputar lungamente delle massime questioni senza conseguir verità nissuna. / Mais estimo encontrar uma verdade sobre qualquer assunto leve do que entrar em uma disputa longa sobre máximas questões sem atingir verdade nenhuma. - Galileu Galilei
Mas Galileu também esteve
equivocado algumas vezes, como no notório caso dos anéis de Saturno; afinal,
com o seu parco instrumento de trabalho e as compreensíveis dificuldades com o
foco, os famosos discos lhe pareceram dois astros mais ladeando o planeta. Mas
os acertos de Galileu, seu exemplo e vida, valem muito mais do que seus evidentes
equívocos – e Gleiser deveria saber disso.
Por exemplo, enquanto
especulávamos sobre a planura da Terra estivemos equivocados; mas tratávamos de
endereçar a verdade, afinal a curvatura da superfície terrestre está sim muito
próxima de zero. Este erro refletia as limitações instrumentais para a época;
mas também, e sobretudo, refletia as limitações em termos de critérios para o
conhecimento. Ainda não havia uma concisa teoria para o conhecimento, nem
estatutos, nem recomendações formais, ou uma metodologia para o conhecimento
que estabelecesse um universo de validez, indicando a margem de erro esperada
no confronto com a realidade. As "verdades" eram publicadas com
ansiedade e alarde; e, portanto, sem critérios. Tudo estava por saber, e não
sabíamos ao certo como saber.
Mas os tempos mudaram, e mudaram
com o filósofo grego Erastóstenes (276-195 AEC), um “gênio do tamanho da
Terra”... que seria o primeiro a notar que a longitude das sombras em relação
ao mesmo horário do dia variava com a latitude onde a medição fosse procedida. Erastóstenes
sabia que no vigésimo primeiro dia do mês de Junho aconteceria o Solstício de
Verão na cidade de Siena; e que, precisamente ao meio dia o Sol brilharia
direto dentro de um poço, iluminando “o seu fundo sem que nenhuma sombra se
projetasse em suas paredes”; isso, enquanto em Alexandria exatamente à mesma
hora ainda haveriam sombras projetadas sobre a parede.
Erastóstenes inferiria, então,
que a Terra devia ser esférica; uma revolução para o seu tempo. Com ajuda da
trigonometria, considerando a distância entre Siena e Alexandria e o ângulo
formado por este arco em relação ao “centro da Terra”, ele calculou a curvatura
correta da Terra. Isso foi medido em “passos” e “estádios”, e envolveu
“sombras”; tudo muito impreciso, embora engenhoso, perspicaz, apaixonante e
científico...
Endereçávamos a verdade com ainda
mais acuracidade, ao que hoje podemos adicionar algumas casas decimais,
calculando a curvatura da Terra em 0,0000786 por quilômetro. Isso seria crucial
para que pudéssemos revisar toda a cartografia da época... E os mapas,
palmo-a-palmo, passariam a ser muito mais precisos, a navegação revolucionada,
e o mundo redescoberto. Tudo isso graças ao gênio e à ousadia de Erastóstenes -
e apesar do erro irremediavelmente incorporado pelas limitações de seu tempo.
A ciência, meu rapaz, é feita de erros, mas estes são erros uteis de serem cometidos, pois nos conduzem pouco a pouco à verdade. - Jules Verne (Viagem ao Centro da Terra)
Agora a Terra era uma “esfera”
perfeita, o que também estaria equivocado por algum tempo. Observando os céus e
os demais planetas, o gênio investigativo de Newton demonstraria que a massa
terrestre em rotação sofria um acentuado achatamento nos polos. Medidas mais
precisas nos permitiriam calcular o grau de elipsidade da
Terra. A Terra esferoide ainda seria muito mais próxima de seu passado esférico
do que de seu passado plano - e diminuindo a gradação de erro. Uma esfera
prefeita nos daria uma curvatura em torno de 12,5 cm/km, enquanto a curvatura
elíptica varia de fato entre 12,657 e 12,472 cm/km. Estávamos chegando lá!
Este raciocínio conduzido por
Asimov, lato sensu, nos permite dizer que julgar a Terra
esférica é muito mais correto do que considerá-la plana; e tal noção tem enorme
impacto sobre as nossas vidas. Também podemos dizer que julgar a Terra plana é
muito mais incorreto do que julgá-la esférica, com os mesmos e severos impactos
sobre o nosso convívio com a realidade objetiva. E ensinar tais
princípios, valorizar o endereçamento obstinado da verdade, é muito mais
produtivo do que destacar a imprecisão deitada sobre o caminho...
Mesmo o nosso esferoide perfeito
seria revisado em 1958, quando o satélite Vanguard I entrou na orbita da Terra.
Uma literal vanguarda científica seria capaz de medir a forma de nosso planeta
com uma precisão sem precedentes. Descobrimos que nos parecíamos com alguma
coisa entre uma pera e uma batata – flutuando e rodopiando no espaço. Correções
da ordem de milionésimos de centímetros por quilômetro foram procedidas, e aqui
estamos – graças ao gênio de Erastóstenes!
Vivemos um conflito
neuropsicológico de ordem evolutiva; somos causais, dicotômicos, lineares,
animistas, essencialistas, intencionalistas, maniqueístas, e tateamos
assustados no terceiro milênio, utilizando cérebros de 150.000 anos, adaptados
à savana africana... Vagamos perdidos em uma espécie de gangorra de absolutos,
tudo ou nada, certo e errado, bom ou mal. Estamos presos aos valiosos instintos
da categorização e do reconhecimento de padrões; e isso, por convenção, se
chama inteligência... Mas nos equivocamos, ou tropeçamos em imprecisões... e
portanto necessitamos de uma metodologia para a validez de nossos avanços,
assim como a análise crítica independente de nossos pares ou rivais... E é
assim que consolidamos um corpus de conhecimento humano... global...
Isso, enquanto a realidade se descortina
livre, desimpedida, solicitando o contínuo registro de acertos, sempre
associado à sua imprecisão ou erro... assumido! Esta atitude ética conforma
avanços objetivos. O absolutismo, o generalismo, e seu homólogo, o relativismo,
tem se prestado ao inconsequente e especioso propósito de justificar medidas
autoritárias e dogmáticas, alegando a impossibilidade de exatidão. Pois
não seria sempre bem melhor acender um pequeno lampejo de luz do que tropeçar
na escuridão?
Hoje sabemos que a mecânica genética
de nosso corpo evoluiu para mitigar os erros e mutações em nosso DNA. É isso
mesmo, o código genético tem um mecanismo autocorretivo, e desta forma estamos
menos sujeitos a mutações drásticas do que estivemos no passado. E podemos
dizer que a Ciência conta hoje com o mesmo sofisticado mecanismo: o Método
Científico, o Método Dedutivo Baseado em Prova (Popper). De forma que a
falibilidade assumida da Ciência de hoje em diante está muito menos sujeita a
erros crassos do que esteve no passado das crenças.
[...] talvez a Terra seja esférica agora, mas um cubo no próximo século, e um icosaedro oco no próximo, e com a forma de donuts no seguinte. O que ocorre, na realidade, é que quando os cientistas conseguem elaborar um bom conceito, eles gradualmente o refinam e ampliam, com crescente sutileza, à medida que seus instrumentos de medição melhoram. As teorias não estão tão equivocadas, mas incompletas. – Isaac Asimov (Ibidem)
Não é tão importante definir se
este valoroso processo se estenderá indefinidamente ou não, absolutamente ou
não; mas, sobretudo, devemos considerar o bem que este honesto trabalho provê;
na medida em que inescapavelmente ilumina o que antes era escuridão. O
importante não é a perfeição, senão progressar... Assim, em 250
anos de maturidade científica, triplicamos a expectativa de vida adormecida
desde o Homem de Cro-magnon, há 50.000 anos, reduzimos em quarenta vezes a
mortalidade infantil, e a violência em cem vezes... enquanto a população foi
multiplicada sete vezes.
Hoje, muitas teorias que alcançam
o status de revolução científica não passam de um conjunto apropriado
manipulações e refinamentos de um corpus de conhecimento pregresso; como quando
Copérnico nos levou de um sistema centrado na Terra para um sistema centrado no
Sol. Copérnico estava desafiando o que parecia ser óbvio com algo que soava
ridículo. Aristarco de Samos e Erastóstenes viveram a mesma experiência... O
personalismo do empenho científico também cedeu lugar ao trabalho independente
de grupos e escolas, promovendo conclusões conscilientes.
Normalmente, e há algum tempo,
vivemos de refinamentos; caso contrário, e considerando a autorregularão e
autocorreção científica em voga, uma teoria estapafúrdia teria vida muito
curta. Exemplos pífios como a “fusão a frio” não passaram de pseudociência, e
não resistiram o crivo científico mais elementar. Isso nos deveria alertar
ainda mais sobre a necessidade de aprimorar nossos critérios, e não
desconsiderá-los – como Gleiser e o “professor de literatura” sugerem.
Voltando a Copérnico, e por mais
que a proposição heliocêntrica parecesse revolucionária, todo este alvoroço não
passou de um problema político-religioso – da alçada do “absoluto” e do
“absolutismo”. Cientificamente, no entanto, tratava-se de um refinamento
teórico em relação aos movimentos dos já conhecidos corpos celestes. Seria a
autoridade religiosa Católica, expressa em seu "livro negro" ou Index,
quem elevaria o trabalho de Copérnico à condição de heresia - sete décadas
depois de sua publicação em 1616, e lá permanecendo até 1822; mas já era tarde,
e o estrago já estava feito...
Copérnico pretendia apenas
encontrar um modelo que melhor acomodasse a realidade de suas observações
celestiais. Neste caso, e em especial, apesar de toda a gambiarra incorporada
ao modelo aristotélico-ptolomaico, a sobrevivência do antigo - “salvando a
teoria” platonicamente - só seria possível, e por tanto tempo, devido à força
da autoridade político-religiosa vigente.
A Teoria da Evolução enfrentaria
os mesmos credos e as mesmas barricadas:
[...] as formações geológicas terrestres mudam muito lentamente, assim como os seres vivos evoluem tão lentamente, que parecia razoável no início supor que não havia mudanças, e que a Terra e a Vida sempre existiram como são até hoje. Sendo assim, não faria diferença se a Terra e a Vida tivessem bilhões de anos de antiguidade, ou somente milhares. Milhares era mais fácil de compreender. - Ibidem
A exemplo do entendimento sobre a
curvatura terrestre, quando medições mais precisas revelaram que a Vida evoluía
em um ritmo muito lento, porém vigoroso, pudemos aprofundar também a
compreensão sobre a idade da Vida. Nasciam a Geologia Moderna, a Evolução, e a
Biologia.
É apenas porque a diferença entre taxa de variação em um universo estático e a taxa de variação em um universo em evolução está entre zero e muito próximo de zero que os criacionistas podem continuar a propagar seus disparates. - Ibidem
O raciocínio também se aplica ao
mundo dos micro-organismos. Um mundo de escalas invisíveis estava escondido de nós;
e toda sorte de crendice seria erigida para preencher as lacunas diminutas hoje
ocupadas pela Microbiologia. Cotidianamente, usávamos dizer – e muitos ainda o
fazem: “menino, não tome esta friagem porque você vai ficar gripado”.
Recentemente ouvi tal disparate de uma amiga microbiologista, para quem o filho
descalço resultaria resfriado. Tratei de recordá-la de dois aspectos: primeiro,
como microbiologista, ela estava obrigada a bem conhecer a origem viral das
gripes e resfriados; depois, como bióloga, seria imperdoável que ela não
recordasse que a seleção natural jamais teria poupado nórdicos, russos, além
dos inuits, se tal conjectura sobre a "friagem" fosse
minimamente verdadeira.
Os "sábios" conselhos
da dita "medicina popular" ou "medicina alternativa" estão
todos sub judice depois que a ciência adentrou o mundo secreto
dos microrganismos, e ajustando a sua escala para uma compreensão profunda e
necessária da natureza: a realidade em uma Placa de Petri... Deuses
e tradições evaporavam no ar, enquanto a Ciência aprimorava seus métodos e
instrumentos e reduzia suas escalas. O caminho estava aberto para a descoberta
dos antibióticos, vacinas, medicamentos... e mais vida - a partir da vida
obstinada de homens como Pasteur.
O gap entre o
conhecimento disponível no acervo científico humano e a nossa práxis popular
é gigantesco. Com a desculpa de que "não sabemos tudo" permanecemos
proibidos de saber, ou "sem saber nada" sobre quase tudo. Apenas
tangenciávamos a realidade; mas não éramos capazes ou encorajados a mergulhar
nesta maravilhosa realidade... Na POESIA DA REALIDADE! Quando escrevi FIAT
LUX - O Homem, Memória do Universo estabeleci como missão colateral
interessar meus leitores pela realidade, despertando a curiosidade em
conhecê-la por dentro... além da realidade sobre nossa própria
realidade.
O conhecimento científico
disponível está muito mais perto de um eventual conhecimento último - em cada
uma de suas fronteiras – do que o fulano médio está da linha de largada para o
conhecimento do ensino fundamental. A maioria de nós sequer começou a jornada
do conhecimento, e sequer chegou na marca onde diz: ZERO.
O físico Marcelo Gleiser diz que
o conhecimento é como uma “ilha” em meio ao desconhecido; e que quanto mais
esta “ilha” cresce maior serão as suas fronteiras. É verdade. Mas quanto mais
esta ilha do que é conhecido cresce, por mais que haja novas fronteiras, menor
será o espaço lá fora - ou daquilo que ainda não conhecemos. Afinal, o Universo
é finito, assim como finita é a sua estrutura.
Hoje, ainda podemos chutar uma
pedra sem ressalvas, mas pensaremos duas vezes antes de pisar em uma formiga ou
esmagar um mosquito, e jamais consideraremos a hipótese de maltratar um
cãozinho. Estas são conquistar recentes, afinal aprendemos sobre a complexidade
dos sistemas neurais, e sabemos que muitos seres vivos sentem dor e vivenciam o
sofrimento neuropsicológico.
Por isso, avançamos sobre o
oceano de ignorância que nos cercava - arbitrado pela crença de que o homem era
uma espécie de “escolhido”, e sendo o único sujeito à dor. Ainda assim, na
Bíblia e em Aristóteles, alguns homens são mais escolhidos do que outros, e a
escravidão é amplamente aceita e recomendada. Matar um infiel - na Bíblia e no
Corão - é antes um dever... Pelo humanismo, pela iluminação científica, sabemos
que isso não é correto. Tais fronteiras não aumentaram a nossa ignorância, mas
certamente abriram novos caminhos dentro da “ilha”.
O conhecimento avança, e a região inexplorada recua [...] com nosso conhecimento expandido. – Linda Randall
Um dia, este espaço tomado pelo
desconhecido representou a diferença entre morrer na selva de dor de dente aos
23 anos ou ministrar uma dose de 500 mg de Cloridrato de Tetraciclina, e voltar
a sorrir por mais 40, 50, 60 anos... O importante, portanto, não é chegar ao
fim de seja lá o que for, mas seguir em frente, curtir a viagem, viver uma vida
digna, útil, e prazenteira; contribuindo como parte de um organismo maior
chamado: Humanidade.
Gleiser insiste, sob o
tendencioso pretexto de que a Ciência não poderá ser exata ou completa, que uma
tal “espiritualidade” ainda mais inexata e na verdade “irreal” poderá ser
invocada para preencher tais lacunas.
Uma balança mede o nosso peso com precisão dada pela metade de sua menor graduação: se a escala é espaçada por 500 gramas, só poderemos aferir o nosso peso com precisão de 250 gramas. Não existe medida exata: toda medida deve ser expressa dentro da precisão do instrumento usado e o faz com ‘barras de erros’. [...] uma medida de 70 quilos deve ser expressa como 70 +/- 0,25 kg [...]. Não existem medidas perfeitas, sem erro. - Marcelo Gleiser (A Ilha do Conhecimento)
Sim, mas e daí? Uma balança
caseira de precisão de uma ou duas casas decimais está sob um crivo mais frouxo
em termos científicos; mas quanto mais ciência mais exatidão. Medimos a
temperatura média do Universo com precisão de 5 casas decimais. Não há como ser
"exato", "absoluto", mas e daí? Indicar a margem de erro é
uma lição Ética da Ciência, e não o contrário. Deus e a religião não indicam
suas margens de erro; e seus fies seguidores simplesmente justificam isso
alegando que "o absoluto a deus pertence", ou é “incognoscível”...
Mas não precisamos da perfeição, já que a natureza e o universo emergem da
imperfeição e da diferença. O argumento de Gleiser é pois meramente platônico,
para não dizer falacioso e desonesto.
Asimov parece concordar com isso,
e tem algo mais a dizer sobre a Ciência e a escuridão:
Existe apenas a Luz da Ciência, e acendê-la em qualquer lugar é como acendê-la em todos os lugares. - Isaac Asimov (A Relatividade do Erro)
Em busca do exato, do absoluto,
do “espiritual”, nos esquecemos ou simplesmente desconhecemos a existência de
gradações de erro - uma falibilidade assumida na atitude científica, e
sendo essa sua maior fortaleza, e não o contrário. Saber de tudo, repito, é
um agravante religioso, e não científico. Esta atitude covarde ou amedrontada
diante da vida, politicamente ou falsamente "correta", orquestrada ou
não, é o que mais prejudica o avanço científico e humano.
Quem pensa ver algo sem falhas, pensa naquilo que nunca existiu, que não existe, e que nunca existirá. - Alexander Pope
O vigoroso e genial físico
Richard Feynman dá o seu depoimento:
Um princípio de pensamento científico corresponde a uma espécie de honestidade incondicional [...].
É esta honestidade incondicional
ou Ética que reside no Ceticismo Científico; confrontando a vacuidade das
crenças e os discursos persuasivos, que trabalham nas sombras e em favor de
mentiras, interesses e sandices. Isso porque as crenças se baseiam apenas na
caprichosa, débil ou vã vontade de acreditar. Não se pode, de forma alguma,
comparar a nobre atitude de tornar-se ciente pelo confronto de hipóteses sérias
e consequentes com a realidade, com a autoridade especiosa de velhas ou novas
convicções.
Não se pode usar como desculpa a
falibilidade assumida da ciência para validar crenças. Uma verdade científica
tem uma validez e universo de aplicação, assim como seu erro assumidamente
demarcado, e que estará sob crivo constante, acirrada revisão, e variada
fiscalização, sendo esta a maior fortaleza da Ciência, e não o contrário - insisto...
Sobre a pretensa crítica ao erro
científico, devo reagir lembrando que dogmas religiosos não podem ser revistos,
e por isso mesmo sua defesa se faz com cinismo, agressividade, violência; e no
passado médio, por meio dos artefatos do terror "inquisitório".
Asimov nos ensinou sobre a relatividade do erro e não da VERDADE...
E insisto que nenhum debate dito
filosófico ou político – e sob nenhum pretexto - estará isento da necessidade
de entender antes sobre a realidade e os subsequentes parâmetros que regem a
nossa tênue lucidez neuropsicológica.
Inventamos a
Ciência, em última análise,
para testar a
nossa própria lucidez!
Pinker nos remete com
brilhantismo à nossa origem biológica:
Nossa mente evoluiu pela seleção natural para a adaptação, e não para a busca da verdade. - Steven Pinker (Como a Mente Funciona; 2003)
Um anúncio afixado diante de uma
igreja batista americana da seita New Canaan [ou Nova
Canaã], alertava no terceiro milênio:
Um livre pensador é um escravo de Satã.
Sei que Gleiser alegará que esta
congregação é doentia, ou que ele não fala “desse tipo de espiritualidade”, mas
crimes contra a liberdade de pensamento sempre estão associados à religião.
Com ou sem religião, pessoas boas podem se comportar bem e as pessoas ruins podem fazer o mal; mas para que pessoas boas façam o mal, elas precisam de religião. - Steven Weinberg (discurso em Washington em 1999)
Sobre os “limites do
conhecimento”, Asimov desafia:
Se o conhecimento pode nos trazer problemas, não será através da ignorância que iremos resolvê-los.
Gleiser insiste na escuridão
científica justificada por sua inexatidão e reducionismo, mas tolera sem pesos
ou medidas uma tal “espiritualidade”. Convido a advertência de Sagan no adágio
de abertura de seu inesquecível O Mundo Assombrado por Demônios:
É melhor acender uma vela do que praguejar contra a escuridão.
Por que escrever uma obra para
ressaltar os limites da Ciência, se as fronteiras continuam “dentro da ilha”? E
como Gleiser citou a Lucrécio - inestimável livre pensador - de forma
desonesta, eu respondo também com o vigoroso e corajoso Lucretius:
Assim como as crianças tremem e têm medo de tudo na escuridão cega, também nós, à claridade da luz, às vezes tememos o que não deveria inspirar mais temor do que as coisas que aterrorizam as crianças no escuro. - Titus Lucretius Carus (De Rerum Natura [ou Sobre a Natureza das Coisas]; 60 AEC)
Devo lembrar a Gleiser que
Lucrécio foi o verdadeiro algoz histórico dos deuses, sendo seguido por Jean
Meslier, para que Nietzsche levasse a fama. Mas existem verdades? Existe uma
verdade absoluta? A primeira questão é objeto de trabalho da Ciência, a segunda
parte de pressupostos fechados e dogmas religiosos; mas podemos sim afirmar que
existem verdades, existem asserções verdadeiras, assim como proposições mais
corretas do que outras, e diferentes gradações de erro. E sabemos disso com
ainda mais segurança depois de Tarski, Russell, Frege, Popper, Sagan e
Asimov...
FELIZ DO HOMEM QUE PODE OPTAR
PELA VERDADE!
Q.E.D.
Carlos Sherman
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