Dedicados aos líderes-maestros e suas orquestras corporativas...
ORQUESTRANDO A LIDERANÇA
A primeira responsabilidade de um líder é bem definir a realidade. A última é dizer obrigado. Entre estes dois pontos, o líder deve servir. - Jacqueline du Pré
Na gestão, a primeira preocupação da empresa deve ser a felicidade das pessoas que estão ligadas a ela. Se as pessoas não se sentem felizes e não podem ser felizes, essa empresa não merece existir. – Kaoru Ishikawa
Faltam quinze minutos para o início do concerto. Dediquei
algum tempo para encontrar o melhor local, e de olho no piano solo. Mas
agora estou absorto, e namorando cada detalhe da arquitetura desse majestoso
lugar. O teatro Dom Predro II em Ribeirão Preto tem um estilo arquitetônico
próprio, adequado a espetáculos de ópera foi fundado na tradição das salas
italianas. Em mais de cinquenta anos de história superou a decadência,
foi parcialmente destruído por um incêndio, e ficou eternizado como a
“Caverna do Diabo” - quando o seu subsolo recebeu bailes carnavalescos. Quase
posso ouvir os sons do passado...
A orquestra já está no palco, e sou despertado de minha
viagem no tempo pelo ruído e caótico do espetáculo dos músicos afinando os seus
instrumentos... Scheherazade de
Korsakov e sua leituras das Mil e Uma
Noites está prestes a desabrochar. 20:00 e nem mais um minuto, e o maestro
entra em cena. Todos os músicos se levantam em reverência, e ele se dirige ao
primeiro violino para uma saudação especial. Agora é hora de receber o pianista
com nova reverência. O protocolo de cordialidade e respeito está cumprido, e
concerto pode começar. Mas o maestro se dirige ao público, visivelmente
emocionado, e captura gentil e alegremente a atenção de todos ao passear pela sinopse da obra que
será executada.
De súbito, uma linguagem que ainda não era capaz de entender, transforma o antes caótico cenário, agora em relutante silêncio, em
harmonia e música... Gestos ininteligíveis para minha parca compreensão da música clássica parecem
fazer todo o sentido para esta maravilhosa orquestra. E logo fica muito claro
que todos aqueles espetaculares e virtuosos músicos estão sendo liderados para
conjurar um espetáculo magnífico, e muito maior do que suas possibilidades
individuais.
Mas suspeito que o segredo de toda esta orquestração não
resida simplesmente no aprendizado da linguagem corporal do maestro, mas em um
protocolo muito mais sútil, embora poderoso e eficaz, e que pretendo
investigar. Também noto que os músicos focam mais em suas partituras do que no
maestro... Seria o maestro de alguma forma dispensável? Qual o seu papel? Maravilhosos
e bem treinados músicos, suas partituras, pentagramas, notas, divisões
rítmicas... não está tudo ali naqueles documentos?
Neste concerto em particular não pude deixar de notar a
alegria do maestro e o seu papel como mestre de cerimônias, conectando a
sinfonia e os músicos à audiência. Senti certa perplexidade e sabia que estava
diante de um momento especial; e a minha cabeça fervilhava de ideias e pensamentos,
enquanto passeávamos de forma allegro non
troppo pela primeira parte: O mar e o
navio de Simbad. E percebi que estava bem diante de um exemplo sólido e
elegante de LIDERANÇA. E percebi a importância de que este líder estivesse
feliz, satisfeito com o seu trabalho... e percebi também que isso transcendia
ao amor pela música. Ele estava feliz por partilhar outras estórias, as
estórias de cada músico, do compositor, da obra, da audiência, de Steinway,
Stradivarius, e mesmo daqueles que construíram, restauraram e conservaram esse
teatro. Todas estas estórias estão sendo contadas em um concerto ao vivo, e eu
percebia isso pela primeira vez.
Reconheço certo viés extático, afinal estava envolto por
esta inebriante névoa clássica, épica, lírica. Mas tudo fazia enorme sentido, e
ainda faz, enquanto relembro esta experiência, para conectar esta estória agora escrita com a estória de cada um que a estará lendo e encenando em seu teatro privado –
a mente. Mas não basta o lirismo, e aprofundo minha observação... Quero
produzir alguma noção prática, tangível, funcional, dessa experiência. Tudo
isso fluía durante a segunda parte, apinhada de solos e variações dinâmicas,
ora lento, depois andantino, allegro molto, e
finalmente con moto... para contar A história do Príncipe Kalender.
Passei a estudar o papel do maestro. E, analisando muitos
vídeos, pude perceber que a minha analogia inicial, comparando um regente a um gestor, poderia estar equivocada; já que
haviam diferentes tipos de maestros, diferentes estilos, indo da graça e
elegância ao controle agressivo por meio de um gestual intimidante. E todos, em
certa medida, pareciam funcionar perfeitamente. A minha esperança na analogia
entre a regência e a gerência de um negócio parecia naufragar. Mas prossegui...
até cruzar com a abordagem do maestro Itay Talgam, dedicada ao mesmo tema.
Talgam relatou o caso do grande maestro Ricardo Mutti, um
dos estilos mais agressivos que já conheci, rsrsrsrs... Mutti costumava dizer que
ele era o “responsável” por sua orquestra e pela obra; e entrevejo a palavra “chefe”. “Sou o responsável
perante ele” – dizia olhando para o céu... E Mutti não se referia a nenhuma
divindade, mas a Mozart:
Se eu sou o responsável por Mozart, esta será a única estória que será contada; como eu, Ricardo Mutti, o compreende.
E lá estava: eureca! Assim como na vida empresarial a liderança
ou chefia de uma orquestra será exercida por homens... humanos, tropo umanos! E um traço em particular demarcava muito bem a fronteira
entre um líder e um chefe: o personalismo!
E a resposta a este personalismo seria igualmente agressiva; já que os 700
músicos do La Scala de Milão escreveram um manifesto dizendo a Mutti que:
Você é um ótimo maestro, mas não queremos trabalhar com você, por favor demita-se.
E agregaram ainda que eram músicos, humanos, e não meros
instrumentos; e que não havia espaço expressar virtude, talentos e características
individuais com alegria diante de tal controle estrito. Mas existem outras
formas de exercer certo controle sem escorregar para a tirania. Richard
Strauss, por exemplo, em seus Dez
Mandamentos do Maestro escreveu:
Se está suando muito ao final do concerto, significa que não fez um bom trabalho [...] não olhe para os trombones, porque isso encoraja eles [...].
Particularmente considero o estilo de Strauss um tanto
quanto apático, e ele deixa rolar... e isso até certo ponto também funcionou.
Por outro lado Strauss escreveu sua própria música, e ainda assim regia olhando
suas partituras, solicitando aos músicos que simplesmente seguissem as
regras... sem interpretações. Sendo este outro tipo de autoridade. Afinal, como
reger a terceira parte da obra de Korsakov sem suar a camisa? O Jovem Príncipe
e a Jovem Princesa em andantino
quasi allegretto, depois pochissimo
più mosso, come prima e pochissimo più animato... Como estar piú animato em um fraque sem suar?
O grande maestro Karajan tinha um estilo mais fluido, nebuloso, intimista,
misterioso, quase enigmático; o que permitia espaço para a má interpretação de
seus gestos. Quando perguntado sobre os riscos de provocar confusão entre os
músicos, mesmo na filarmônica de Berlin, ele explicou que o primeiro músico
está atento aos seus gestos, enquanto os demais seguem a este músico, de forma
que uns seguirão aos outros. Karajan acreditava que isso induzia algum tipo de
interação de grupo; de forma que gostava de acentuar que os seus comandos nunca eram muito
claros.
Tenho as minhas ressalvas sobre este modelo, já que Karajan
regia com os olhos fechados, e seus músicos pareciam estressados tentando
interpretar o que fazer. Em um episódio em Londres o flautista perguntou:
“Maestro, quando devo começar?”; ao que Karajan respondeu: “Quando não estiver
mais aguentando.”. De todas as formas este estilo também guardava muito personalismo,
já que todos estavam tentando descobrir o que Karajan desejava. Era a música
dele, o estilo dele, e de olhos bem fechados para outras necessidades. Este
também era um controle rígido, embora exercido pela evocação de abstrações, e
disfarçando mais uma vez a figura de um chefe... um chefe bem misterioso neste
caso.
O caso que muito me impressionou, no entanto, foi o estilo de
Carlos Kleiber. Ele regia com alegria, conectado aos músicos e à audiência, fiel
à obra, mas solto e quase íntimo... como o maestro de Ribeirão Preto.
Kleiber consolidava as minhas suspeitas sobre a possibilidade de liderar em
lugar de chefiar uma orquestra. Assim como acredito ser possível liderar uma
companhia ao invés de chefiá-la, abarcando as diferentes personalidades
humanas, aplicando este mesmo conceito a diferentes negócios, produtos e serviços, fruto de diferentes
histórias, e que participarão das estórias e histórias de outras pessoas e empresas.
Kleiber viaja na obra, mas abrindo espaço para a expressão
da virtuose individual em meio a uma condução segura, embora saltitante...
Como na Festa em Bagdá e no Naufrágio do Barco nas Rochas, fechando
a quarta parte da obra de Korsakov em allegro
molto, vivo e allegro non troppo maestoso. Assim como
fizera o maestro Cláudio Cruz, regente apaixonado da Orquestra Jovem do Estado,
ao abrilhantar o espetáculo no Teatro Dom Pedro II.
Afinal, e quando aprimoramos ou reinterpretamos uma obra, também
estamos construindo uma nova estória dentra da história. Não proponho aqui que
divaguemos sobre a obra, e em absoluto, mas sim que alimentemos a liberdade
criativa humana, e que contemos a mesma estória em outro tempo, e um outro
capítulo histórico. Mas como isso acontece? Como este mágico momento acontece?
É como estar em uma montanha-russa [...] Mas as forças desse processo por si só mantém você no caminho. – Itay Talgam
Isso enquanto cada um se expressa de maneira individual, em
um processo relativamente controlado... A
confiança, o respeito, a liderança segura e justa, transforma toda a orquestra
em uma fraternal parceria – como em um barco a remo. Podem haver disputas
internas, diferentes temperamentos e níveis de ambição, mas o processo não pode
acomodar e incentivar ambições desmedidas, ou todos naufragam.
Todos precisam conhecer seus papéis, e estar em boa forma para exercê-los, além da alegria; mas a liderança os transformará em um organismo orquestrado... Os procedimentos estão lá, as partituras; o plano está traçado,
assim como os diferentes protocolos a serem seguidos. Existe uma métrica
subjacente, uma divisão rítmica, o tempo está contado. Mas subsiste a alegria
da expressão e do orgulho pessoal como colaborador, como parte do grupo, atentos ao
líder que por sua vez vibra com a performance de cada um, e de todos.
Uma apresentação de Kleiber em especial é fantástica, e
quando um trompetista comete não um, mas três erros consecutivos; o maestro sutilmente indica a falha uma, duas, três vezes, e demonstra a sua autoridade
sem perturbar o andamento de toda a orquestra. Kleiber é sutil na puxada de
orelha, e demostra toda a sua maestria como líder. Um dos maiores desastres
em uma empresa ou organização é viver em um ambiente de intriga e fofoca; mas o problema será infinitamente
maior quando os próprios líderes alimentarem intrigas e fofocas.
Empresas modernas têm estudado ambientes e sistemáticas que
não valorizem o péssimo hábito de falar pelas costas. A transparência e a ética
serão bens muito valiosos nas próximas décadas. Um líder deve dar o exemplo; afinal, de alguma forma ele deve replicar o DNA da empresa em sua conduta. Estamos enveredando
por um caminho onde o compliance
deixará de estar só no papel. Na dúvida, faça o que é correto.
Em diversos momentos é possível notar na regência de Kleiber quando ele abaixa
corpo, como se rendesse honras ao solista, e parece mesmo baixar os braços para
apreciar o solo... É magistral, é excepcional. Ele rege com os olhos – bem abertos
-, com a boca, com todo o corpo, e de repente, suspende tudo e se curva para
apreciar os seus músicos... seus parceiros. Ele está lá, está entregue ao que faz, mas não está
mandando... está conduzindo e apreciando o trabalho de seus colaboradores. Kleiber
circunscreve o processo dentro de um objetivo, e passa então a servir sua
orquestra, para finalmente agradecer pelo belíssimo trabalho... ou pelo
incansável empenho.
Não seria possível adentrar este mundo tão sutil, e esta
linguagem tão maravilhosa, sem a ajuda de Talgam e a inspiração de Cláudio Cruz. E gostaria de tocar em um último ponto: a liderança não é um jogo de soma zero! O
êxito de um líder não pode implicar em perdas e descaracterização de seus liderados. Eles
estão no mesmo barco. O progresso não é um jogo de soma zero... E por esta
razão estamos vivendo três vezes mais, morrendo quarenta vezes menos ao nascer,
e somos cem vezes menos violentos do que no passado. O progresso, em termos objetivos,
mais parece uma curva ascendente em forma de serra. As subidas e descidas
produzem desvios cognitivos. E apesar dos psicopatas à solta nas altas esferas
corporativas e políticas, a compaixão tem ganho a batalha.
E, ao entender tudo isso, será possível extrair boa música de
sua empresa... e praticar a verdadeira liderança. Mutti tinha sempre a mesma
expressão no rosto; Kleiber interpreta suas obras com tudo o que existe nele.
Esta é a suma experiência da entrega. Um líder deve entregar-se... em
sacrifício. E você poderá sentir e ver a música em seu rosto.
Leonard Bernstein tem uma variação do estilo de Kleiber, com
maior desenvoltura nas obras que retratam o sofrimento – talvez por ser judeu. Em
determinado momento, em meio à regência, Bernstein costumava colocar a batuta
debaixo do braço, como se dissesse ao solista: agora você está comando,
companheiro! Um líder não rouba a cena, ele promove seus colaboradores, ele faz
música com eles.
E finalmente, um líder se torna um exímio contador de
estórias... Bernstein simboliza este gesto em uma regência única de sua
orquestra de câmara. Ele coloca a batuta debaixo no braço e passa a admirar
todo o concerto, apenas fazendo movimentos com a face, com os olhos, boca, sem
perder o controle... É sensacional! Bravo, bravíssimo!!!
Carlos Sherman
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