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quarta-feira, 2 de julho de 2014

A Violação de Cénis




A VIOLAÇÃO DE CÉNIS

No programa "TrueOutspeak" - arrogâncias à parte - do dia 29 de Dezembro de 2010, a criatura vermicular quer se expressa por via anal, se diz 'filósofo' e jornalista, Olavo de Carvalho, tem a ousadia de comentar um artigo do nobre cidadão brasileiro e figura pública do maior enlevo, Drauzio Varella. Entre outras rasgantes imbecilidades, Olavo mostra por que sabe tudo sobre ser um idiota, ao escarnecer textualmente que:

“Eu não levo o meu cachorro para o Drauzio Varella cuidar... Você olha a cara dele, um cara dando conselho de saúde com aquela cara de doente... Sinceramente, não dá gosto... [...] e essa estória de que o homossexualismo era aceito na Grécia e Roma é coisa de analfabeto como você...”

Pois apresentemos a Olavo e ao séquito 'olaviano' um pouco de Mitologia Grega... Entre tantos exemplos e informações historiográficas, escolhi parafrasear o relato de Sagan em 'Sombras de Antepassados Esquecidos'...

"Nem os deuses imortais podem fugir, nem os homens que apenas um dia vivem. Aquele que te tiver dentro de si é louco." - SÓFOCLES, Antígona

"Sobre a Terra voa, e sobre o eco ruidoso do mar salgado. Enfeitiça e enlouquece o coração da vitima sobre a qual se lança. Enfeitiça a raça dos leões caçadores da montanha, e a dos animais do mar, e todas as criaturas que a Terra alimenta, e o sol chamejante percebe — e o homem também — que sobre todos deténs o poder régio, Amor, és o único governante acima de todos eles." - EURÍPEDES, Hipólito

A Mitologia Grega nos brinda, entre tantas estórias alucinantes, com a saga de Cénis, "a mais bela das donzelas da Tessália", que ao passear sozinha numa praia isolada, teria sido avistada por Posídon — deus do mar, irmão mais velho do rei dos deuses e violador ocasional. Louco de desejo, o deus tratou de possuí-la imediatamente - e sem o seu conhecimento. Não havia a "Maria da Penha" no Olimpo, sem contar o notório desprezo pela mulher... mas Posídon, depois do ato consumado, e segundo a lenda, apiedou-se da moça, disposto a conceder-lhe algum tipo de reparação. "Virilidade"; esta foi a pronta resposta. Em um mundo machista e misógino, ela desejava ser transformada num homem — não um homem qualquer: um homem extremamente másculo, um guerreiro, e "invulnerável". Desse modo, nunca mais seria sujeita a semelhante dor, humilhação, e violência. Posídon acedeu, e a metamorfose foi total. Cénis transformou-se em Ceneu - talvez a primeira cirurgia transgênero da História...

O tempo passou, e Ceneu foi inclusive pai... Com a sua espada cortante, e destramente manejada, matou muitos, aos milhares... Além disso, as espadas e lanças de seus adversários nunca logravam perfurar o seu corpo. E não tão difícil adivinhar o resto da história; Ceneu acabou se tornando tão arrogante que passou a escarnecer dos próprios deuses. Erguia a sua lança no mercado e obrigava o povo a adorá-la, e a sacrificar-se a ela. Ordenava, sob pena de morte, que não adorassem mais nenhum deus. senão ele; e mais uma vez o simbolismo me parece bem claro, na narrativa anedótica.

Pois os Gregos chamavam de 'hubris' à extrema arrogância, cujo comportamento de Ceneu encenava; sendo esta quase que exclusivamente uma característica masculina. Mais cedo ou mais tarde, ela - ou ele - acabaria atraindo a atenção e depois a represália dos deuses — particularmente estupefatos com a pouca ou nenhuma deferência de Ceneu pelos humanos, um mortal subjugando mortais e afrontando os deuses. Os deuses estavam ávidos por submissão - e até hoje; quando a notícia da afronta de Ceneu chegou finalmente aos ouvidos de Zeus - cuja secretária estava, sem dúvida, atulhada com processos desta natureza -, ele ordenou aos centauros — quimeras, metade homem, metade cavalo — que executassem a sua implacável sentença. Obedientemente, atacaram Ceneu, atormentando-o:

"Não te lembras do preço que pagaste para obteres esta falsa aparência de homem [...]. Deixa as guerras para os homens."

Mas os centauros não estavam preparados para o que viria, e perderam "seis integrantes", mortos pela ágil espada de Ceneu, que certamente não estava para brincadeiras. As lanças apenas ricocheteavam no corpo do transgênero "como granizo num telhado". Envergonhados por serem "vencidos por um inimigo que era só metade homem" — fraco argumento, vindo de um centauro —, decidiram sufocá-lo com madeira, abatendo uma vastidão de bosques "para esmagarem a sua vida de teimosia com florestas como nossos projéteis" - medida nada ecológica. E, como "ele" não possuía quaisquer poderes especiais no tocante à respiração, após alguma resistência, lograram a imobilização, para finalizar o oponente por asfixia - numa espécie de episódio 'X-Men' misturado com um embate do tipo 'MMA do Olimpo'...

Mas havia um Grand Finale... Ao enterrarem o corpo foram tomados de surpresa ao descobrirem que Ceneu havia se transformado novamente em Cénis; o guerreiro invencível havia voltado a ser uma jovem bela e vulnerável...

Talvez a pobre Cénis tenha tomado uma sobredose da substância que Posídon usou para efetuar a metamorfose; uma overdose de Testosterona olímpica... Existe, portanto, uma quantidade certa de 'seja lá o que for' que dá virilidade aos deus - acreditavam os Gregos antigos; e, quando isso é de mais ou de menos, pode nos causar problemas, ou alterações comportamentais. Nascia a Neurociência no Olimpo...

Os testículos de um pardal têm cerca de um milímetro cúbico, e pesam cerca de um grama; sendo provavelmente uma das razões pelas quais nunca se ouve dizer que alguém está pendurado pelos testículos "como um pardal"... Com os ditos intactos, as briguentas aves entram no papel estabelecido por sua hierarquia biológica de forma basicamente linear; expulsando as aves que lhes invadem o território e, se forem de estatuto elevado, fazem abordagens bem-sucedidas a fêmeas férteis. Mas metam a mão debaixo daquelas penas, removam esses dois pequeninos órgãos, e verão que - depois da necessária recuperação - todas essas características se perdem; as aves agressivas tornam-se submissas, as aves ciosas do seu território mostram-se complacentes para com os intrusos, as aves fogosas perdem o interesse pelo sexo. Agora injetem no pardal uma certa molécula esteroide, provavelmente a mesma utilizada em Cénis pelos "deuses", e verão que a ave recupera o seu destemido entusiasmo pelo sexo, agressividade, domínio e territorialidade.

Pouco tempo depois da castração, os machos das codornizes-do-japão perdem o seu andar emproado, deixam de cacarejar e acasalar. Deixam igualmente de despertar o interesse nas fêmeas. Se forem tratados com o mesmo esteroide, voltarão a pavonear-se, a cantar, a acasalar, e as fêmeas voltarão a considerá-los irresistíveis. Se castrarmos um jovem caranguejo-violinista ele nunca desenvolverá as enormes e tenazes garras assimétricas que o caracterizam.

Há milhares de anos que os homens sabem disso. Os guerreiros capturados eram castrados para que não dessem mais problemas... Pobres eunucos... Não precisamos de deuses e fábulas para entender a diversidade e complexidade humana... Em nossos dias basta estudar, e assim evitar de ser um completo idiota e fascista como Olavo de Carvalho, Bolsonaro, Feliciano ou Malafaia...

Na Síndrome de Turner, por exemplo, diz-se que as crianças nascem geneticamente 'neutras' em relação à sexualidade... Isso porque a Síndrome de Turner caracteriza-se pela existência de somente um cromossomo 'X' - que pode ser herdado da mãe ou do pai -, ao invés de 'XX' para meninas e 'XY' para meninos - sempre um 'X' da mãe e um 'Y' do pai... Como supra-citado, o default nos mamíferos é o sexo feminino, e sendo assim essas crianças tem uma aparência de meninas e agem como meninas... Os geneticistas descobriram no entanto, que os pais podem transmitir genes através no cromossomo 'X' e que poderão ativar ou desativar, ou ativar mais ou menos, aspectos na neurofisiologia destas crianças... Uma menina que receba o cromossomo 'X' de seu pai, podem desenvolver aspectos neurológicos inerentes ao comportamento de meninos... Isso porque a ausência do 'X' materno, provoca um desequilíbrio no desenvolvimento gestacional, posto que em condições normais, 'XX', os dois cromossomos 'conspirariam molecularmente' para que o desenvolvimento apontasse para uma menina...

Percebam a importância das sutilezas inerentes à gestação e ao desenvolvimento embrionário... Um pequeno detalhe e o comportamento se vê modificado... E de fato, no caso da Síndrome de Turner, o comportamento das meninas difere muito, dependendo da origem do seu 'X', vindo do pai ou da mãe... As meninas que receberam o 'X' dos pais, são marcadamente mais desenvolvidas e desenvoltas na interpretação da linguagem corporal e emoções, no reconhecimento de rostos, e no uso da linguagem...

Neste ponto, acentuo a perspicaz ‘poesia’ de Shakespeare, quando entende – na obra epítome do romantismo, ‘Romeu e Julieta’ - que tudo será resolvido no cérebro:

“Oh, já vejo que a rainha Mab contigo esteve. Ela é a parteira das fadas, e aparece Em forma não maior do que uma ágata No anel do índex de um senador, Conduzida por uma série de pequenos átomos Passa pelos narizes dos homens enquanto eles deitados dormem; Os raios das rodas do seu carro feitos de longas pernas de aranha, A coberta, de asas de gafanhotos; As rédeas, da mais fina teia de aranha; Os arreios, de húmidos raios de luar; O chicote, de osso de grilo; a mecha, de delgadíssimo fio; O cocheiro, um pequeno mosquito de libré cinzenta, Mais pequeno do que um pequeno e redondo ponto Retirado do indolente dedo de uma donzela; A sua carruagem é uma casca de avelã, Feita pelo marceneiro esquilo, ou pelo velho verme, Desde tempos imemoriais os segeiros das fadas. E neste esplendor ela galopa noite após noite Pelos cérebros dos amantes, que então sonham com o amor...” (‘Romeu e Julieta’; a. I, c. IV)

E o ‘poeta’ aprofunda a sua análise neuroquímica do funcionamento cerebral, desconfiando do ‘livre-arbítrio’; em ‘Sonho de Uma Noite de Verão’, Oberon chama a atenção de Puck para o fato de que, como a flecha disparada pelo Cupido e caída sobre a flor branca torno-a púrpura de paixão, eles poderiam induzir, com a mesma poção, o amor de Lisandro sobre Helena:

“[...] se deitarmos um pouco do sumo sobre as pálpebras de homem ou mulher entregue ao sono ficará loucamente apaixonado por quem primeiro vir.” (‘Sonho de Uma Noite de Verão’; a. II, c. I)
Então Puck, meticulosa e ‘quimicamente’, apesar do lirismo poético, induz Lisandro a se apaixonar por Helena – a quem antes desprezava -, e Titânia a se apaixonar por Bottom - o tecelão com cabeça de asno. Matt Riddley, em sua memorável obra ‘O Que Nos Faz Humanos’, atua como uma espécie e Oberon moderno, desafiando muitos ‘arco-íris’:

“Quem aposta comigo agora que eu não posso fazer agora algo parecido com uma Titânia moderna? É evidente que não seria suficiente uma gota nas pálpebras. Eu teria de dar a ela um anestésico geral enquanto introduziria uma cânula na amígdala medial e injetava ocitocina nela. Duvido que com isso eu conseguisse fazê-la se apaixonar por um asno. Mas eu podia ter uma boa probabilidade de fazê-la se sentir atraída pelo primeiro homem que ela visse quando acordasse. Você quer apostar?”

Fantasia por fantasia, devo esclarecer que, apesar do realismo contundente do comentário de Riddley, os comitês de ética científica jamais aprovariam tal experimento... Mas ainda assim ele ocorreu - e com inegável sucesso; tal experimento foi conduzido com diversos mamíferos que compartilham conosco a mesma estratégia bioquímica para o ‘amor’ (Riddley, c.2, ‘Uma Abundância de Instintos’). Muitos aditivos devidamente aprovados por nosso consenso popular, como o álcool, drogas de uso psiquiátrico, e drogas ilegais, são capazes de induzir e potencializar comportamentos, ou desativar nossas estratégias e defesas inatas, e descaracterizar ou ‘recaracterizar’ nossa conduta. Existe muito a ser compreendido neste ‘arco-íris’, e que foge – mesmo considerando as flexíveis fronteiras - ao presente trabalho.

“Então o céu me falou em linguagem límpida, Mais familiar ao coração do que o amor mais íntimo. O céu disse à minha alma: ‘Tens o que desejas! Aprende que nasceste junto com esses ventos, Nuvens, estrelas, mares sempre em movimento,E habitantes da floresta. Essa é a tua natureza. Ergue de novo teu coração sem receio, Dorme na tumba, ou respira com enleio, Este mundo que com a flor e o tigre partilhas.” (‘Passion’; 1943)
Belíssimo, não? Não se trata de Shakespeare, mas da visão ‘poética’ de uma estudante de ciências naturais em Cambridge. Algumas desilusões amorosas, além de um novo vislumbre da vida, proporcionado por seu curso de especialização em Biologia, serviram de inspiração para a pérola poética acima. Um pouco do que chamo de POESIA DA REALIDADE...

Lembrando apenas, e por fim... que no clássico shakespeariano de ‘Romeu e Julieta’, em apenas 3 dias este enlouquecido ‘amor’ contaria 6 mortos...

Carlos Sherman


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