Pai,
Quando Sócrates foi condenado à morte por suas reflexões filosóficas
e por blasfemar contra os deuses de sua cidade - e cuja blasfêmia hoje se constituiu como mero fato mitológico -, ele escutou o veredito com resignação, e aceitou sua sentença de morte sem sobressaltos... Ele então disse algo como
‘bem, talvez ainda me seja concedida a fortuna de debater com grandes pensadores,
filósofos e céticos, quem sabe após a minha morte, sobre o que seria realmente bom, belo, nobre, puro, ético, ou sobre
o que seria ou não verdade'... Por que essa era, segundo Sócrates, e enquanto saia
pela porta dos fundos de sua vida, a única conversa ou debate que realmente valeria
a pena travar...
Não sei bem se o mundo que me sucederá, quando aquele brilho
já não possa ser denotado em meu olhar, entenderá a premência de tais debates e
questões; mas sei que Sócrates tinha toda a razão, e deixou uma marca indelével, enquanto, pelas minhas contas, saiu altivo pela porta da frente da História da
Humanidade... O que eu sei, e bem sei, é que esta é a conversa e a reflexão mais
importante com a qual devo me ocupar - enquanto ainda estou vivo... Nada pode ser
mais importante do que tais questões... Nada - de fato - é!!!
A oferta da salvação deitada sobre alguns covardes, eleitos às custas do sofrimento de muitos
mais; esta certeza cega de uma imortalidade fantasiosa, o apelo ao dogma da submissão,
em um ato de fé deplorável e sinistro, uma fé que não pode ser sequer permeada
pela verdade; toda esta liturgia de morte ao pensamento não seduz a minha
integridade intelectual... Estas são oferendas e bênçãos que não valem a pena
possuir...
Aceito os risco de pensar, insaciável, sedento por um saber que
nunca será o bastante, ciente de que nunca terei aprendido o suficiente; faminto,
e isso sim ad eternum, pela possibilidade de uma nova colheita de experiências
e conhecimento, que ainda assim não poderá aplacar a minha curiosidade...
Dirigindo-me a um lugar sempre mais claro, mas irremediavelmente sem fim...
Eu os exorto, homens de bem, a desconfiar daqueles que
pretendem negociar vossa pretensa salvação cobrando vossa liberdade... Invocando
a pulsão de morte apocalíptica, e mostrando o porrete, enquanto recitam versos
caquéticos... A humanidade é tão jovem, somos tão jovens!!! Vocês não estão
mortos ainda, a pulsão de vida vos atravessa... Eu os exorto a repudiar a
repetição nauseante orientada para que capitulem de joelhos, e aceitando as
crenças deles - todos eles...
Por que o desespero de crer se podemos esperar para saber??? Pelo bem comum, pelo bem da humanidade!!!
Desconfiem do apelo excessivo às tradições... É certo que
algumas poucas pedras devem permanecer onde estão, mas não por amor às pedras,
e sim pelo apreço que sentimos pelos homens... Horror maior não há, do que a sentença de que só poderemos viver
se curvados à uma autoridade absoluta...
Não pensem nisso como uma dádiva, este é genuinamente um cálice de cicuta... Afastem este cálice, tomem os riscos
da liberdade de pensamento, afinal, só existe grandeza e humanidade neste
ato... Orientem-se pela integridade intelectual... Só assim endereçaremos alguma
verdade, e só assim produziremos alguma beleza, justiça, e bem comum...
Por certo enfrentarei desafios até os
meus últimos instantes... E espero ainda, e em função das decisões que precisei
tomar, que a vida não dure além da conta... Parafraseando Chico Anysio, posso dizer que não temo a morte, embora sinta um enorme pesar pela
partida... Fica uma sensação de desperdício... E ainda mais quando os terços são
recitados...
É verdade, meus amigos e detratores, este é único assunto em que consigo pensar, o único que realmente me provoca tratar, o mais importante e urgente!!!
Pai, eu sei que passo a maior parte do meu tempo sozinho, poucos alcançam estas altitudes... Mas eu entendo o processo, e já me acostumei com a vertigem e a paisagem... Esta é minha sina, e ainda assim gosto de pensar que herdei o melhor de vocês em meus genes... Não é irônico?!?
Carlos Sherman ‘Junior’ (Inspirado por Hitchens,
Harris e Russell)
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