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segunda-feira, 15 de abril de 2013

Inspiração: o que a ciência tem com isso


Inspiração: o que a ciência tem com isso

Ao abrir, ainda na livraria, um exemplar com o estranho título de O mundo assombrado pelos demônios, deparei com a seguinte dedicatória:
Para Tonio, meu neto. Eu lhe desejo um mundo livre de demônios e cheio de luz.
Estava ainda comovido com essas esperançosas primeiras palavras quando fui ao caixa. Voltei para casa com mais um livro por explorar e com aquele inconfundível gostinho do novo, aquela ansiedade provocada pela expectativa da leitura, que nossa Clarice chamou de felicidade clandestina.
Como muitos de nossos contemporâneos, Carl Sagan se impressiona com o fato de tantas pessoas ainda cultivarem superstições e pseudociências, como se ainda transcorressem as fases mais obscuras da Antiguidade e do período a que os historiadores renascentistas denominaram Idade Média. (Lembrando: esse adjetivo deriva de medíocre e não de metade, pois a Idade Média não é a parte do meio entre uma coisa e outra, já que ninguém sabe quanto tempo durará o futuro.) Também como se todas as conquistas da modernidade não fossem suficientes para fazer distinguir os resultados das relações de causa e efeito de alegadas situações mágicas, que é como se sustentam as crenças.  Em outro de seus livros, Pálido ponto azul, depois de nos revelar a deslumbrante vastidão do universo conhecido, Sagan escreve:
Como é possível que praticamente nenhuma grande religião tenha olhado para a ciência e concluído: “Isso é melhor do que imaginávamos! O universo é muito maior do que disseram nossos profetas, mais grandioso, mais sutil, mais elegante”?
Aliás, os profetas… Bem, sabemos que não faz sentido perder tempo com profecias. Em geral, com nenhuma delas. (Nem mesmo com a profecia maia para 2012, que logo terá sido esquecida, como se deu com outras. Mas talvez alguns ainda se lembrem dela quando brindaram ao feliz ano novo, 2013). Ou com a interpretação de qualquer texto místico, porque podemos interpretá-los como bem nos convém, e essa é a razão pela qual tais interpretações carecem de valor sustentável, como uma vez expus no artigo sobre as técnicas pioneiras de Roman Jakobson. Para os acomodados, basta a ilustração de uma torre de castelo em chamas, algo comum em situações de guerra, para logo associá-la à tragédia do World Trade Center, como se o evento tivesse sido previsto durante a Baixa Idade Média. Se queremos encontrar um padrão que contemple os inúmeros exemplos frustrantes promovidos por textos desse naipe e por seus intérpretes, podemos concluir que o que as profecias têm em comum é nunca se realizarem.
Textos antigos sugerem explicações para as origens das coisas, inclusive dos seres vivos. Eram produtos de homens eruditos, cada um no padrão de sua comunidade e de seu tempo, que tentavam, a seu modo, entender a realidade e compreendê-la. E não podemos culpá-los, não é justo. Os homens do passado não podiam saber do que sabemos hoje. Aliás, nem mesmo de uma pequena parte do que sabemos hoje. Nenhum de nossos ancestrais tinha condições de visualizar uma célula, por exemplo, ou atinar com a complexidade das combinações genéticas, ao passo que hoje dispomos de processos radiométricos cada vez mais precisos para a datação de fósseis e podemos calcular o tamanho de um elétron – 10–16m, aí está, sem mais rodeios, para saciar logo qualquer curiosidade e não nos desviar do assunto principal, a inspiração e o prazer do conhecimento.
Até bem perto de nós, com a distância de apenas cinco séculos, nosso planeta era considerado o centro do universo. (No início do século passado, Einstein demonstrou que o espaço e o tempo eram interligados, o que me permite usar palavras como perto e distância mesmo quando me refiro ao tempo.) Há pouco menos de duzentos anos, não se conheciam ainda os processos de seleção natural, que deram origem aos atuais seres vivos. E ninguém supunha a existência de galáxias que se estendessem para além de nosso pequeno domínio, neste recanto aleatório do cosmo. Foi um filósofo, e não um astrônomo, o primeiro a sugerir a existência de outras galáxias, que ele chamou ilhas-universo, porque não conhecia suas distâncias e imaginava algo menor do que realmente eram. Kant, como os outros, usava a definição galáxia (que significa círculo leitoso) para definir apenas a nossagaláxia, que parecia ser a única. Em meio a toda essa escalada de novidades (todas muito antigas, aliás, mas não para nós), nem mesmo a trajetória da espécie humana aponta para qualquer objetivo sensível, como esperavam alguns antigos pensadores, o que, é claro, de certa forma nos preocupa.
O paleoantropólogo Richard Leakey, em seu esclarecedor A evolução da humanidade, nos lembra:
[...] devemos evitar pensar em termos de simples caminhos diretos ao longo dos quais nossos ancestrais progrediram inexoravelmente em direção ao presente. Do ponto de vista do pré-historiador é mais útil, ao contrário, pensar em termos de um palco no qual vários atores diferentes desempenharam um drama longo e complexo. Queremos saber quantos atores estiveram envolvidos no drama, quando entraram no enredo, como se relacionavam com os outros atores e, finalmente, quando deixaram o palco.
Agrada-me a maneira, a um tempo realista e poética, com que o autor se refere à saga, em parte conhecida, em parte imaginada, de nossos ancestrais ao longo do tempo, num esforço contínuo pela sobrevivência. Diferente de sugerir uma aventura monumental, ela deve ter sido rude, difícil e mesmo assustadora, passando por dramáticas situações coletivas, como atestam certos “gargalos” do passado, revelados pela análise de nosso sequenciamento genético, como quando, por exemplo, há 70 mil anos, a comunidade humana esteve reduzida a cerca de 15.000 indivíduos, após um “inverno vulcânico” que teria durado seis anos.
É normal que alguns cientistas se expressem num tom sóbrio, simples e humilde, pois trabalham com dados extraordinários, descobertas surpreendentes, medidas de tempo acima de nossa capacidade de visualização, números (literalmente) astronômicos que nos tornam, num instante, pequenos. Revelando sua posição como cientista e como homem, Leakey escreve:
O fato de todas as culturas terem um tipo de deus ou deuses é visto por muitos como uma evidência significativa da existência de tais divindades. Outros, entre os quais eu me incluo, preferem inferir desse fato algo sobre a natureza especial da mente humana.
A honestidade dessas palavras, a maneira clara e discreta – “entre os quais eu me incluo”, ele diz – com que esse pesquisador declara sua cosmovisão inspiram todos os que, de alguma forma, se sentem em busca de alguma verdade não contemplada pelas tradições. O biólogo britânico Richard Dawkins considera que essa visão, além de reafirmar e melhorar nossa relação com a realidade, “ao mesmo tempo nunca é afetada pela autoilusão, pelo excesso de otimismo ou pela autopiedade chorosa daqueles que acham que a vida lhes deve alguma coisa.”
Meus textos são diretamente influenciados por esses arranjos, ainda que algumas vezes não aparentem ser. Talvez seja inevitável, pois todo autor expressa a soma dos contextos que o formam. Meus personagens não vislumbram saídas fantasiosas, não se confortam com recompensas futuras, não se apegam a nenhum tipo de predestinação nem se impressionam com tragédias cotidianas. Eles têm em mente que toda a agitação fervilhante ao seu redor compõe um breve riscar de fósforos numa imensurável cronologia que heroicamente tentamos organizar.
A minha é uma literatura de respostas. Melhor dizendo, de respostas ao meio em que vivo. Ou de personagens em busca de respostas, o que é mais comum, até previsível. Antes disso, uma literatura de personagens ainda se esforçando por encontrar as perguntas certas, que disso depende tudo o mais. Muitas dessas respostas permaneciam perdidas entre os versos e a prosa de literatos do passado, daí que o eco remanescente de seus textos clássicos nos parece estranho. Mas a metáfora é permanente, e as inquietações de Camões sobre o amor não correspondido podem ser compartilhadas por qualquer jovem na mesma situação, em qualquer tempo.
A ciência é uma procura pela verdade, um processo autocorretivo que se apoia em evidências, e isso explica sua grande importância em nossas vidas. Faz diferença saber que o Sol é uma grande bola de hidrogênio e não uma divindade a quem devemos respeito. Que os anjos são personagens míticos e não podem nos proteger. E enfim que todos os textos são escritos por nós, os engenhosos inventores da escrita. Os mais curiosos e obstinados (que chamamos pesquisadores) são os que abrem portas para novos ciclos de conhecimento, e isso, sem dúvida, se reflete em todas as formas de expressão, o que inclui diretamente a literatura.
As dimensões de tempo e de espaço com as quais já nos habituamos são grandes demais. Nossos problemas cotidianos parecem ridículos diante delas – e são. Mesmo a história secular de uma determinada família ou de uma determinada nação declina insignificante num contexto cósmico. Outra vez, com o mesmo tom de humildade que lhe inspira o vasto universo, Carl Sagan nos lembra que “somos como borboletas que esvoaçam por um dia e julgam ser por todo o sempre.”1
Mesmo assim, as coisas que nos fascinam podem nos mover ao longo da vida, independente de compararmos nossas poucas décadas disponíveis com os ciclos incrivelmente extensos que podemos avaliar hoje. Isso não é uma maneira de se consolar. Isso é real. Quando estamos diante de algo encantador, não podemos negar a nós mesmos essa realidade. Não podemos menosprezá-la. Ao contrário, devemos valorizá-la honestamente. E merecê-la.
O renomado paleontólogo Stephen Jay Gould, autor de Pilares do tempo, entre outros de seus textos inspiradores, nos deixa o seguinte depoimento:
Eu sonhava em me tornar um cientista de algum tipo, especificamente um paleontólogo, desde que o esqueleto de um tiranossauro do Museu de História Natural de Nova York me havia maravilhado e assustado quando eu tinha cinco anos de idade. Tive a imensa sorte de atingir esses objetivos e continuar amando meu trabalho com todo o coração até hoje, sem nenhum instante de dúvida ou tédio prolongado.
Vivendo nos limites de nosso discreto endereço cósmico, temos como guia o exemplo de inúmeros homens e mulheres que se envolveram com seus ideais a ponto de nos encantarem também com suas vidas. Pessoas dedicadas a algo que supunham maior do que elas próprias, algo que as motivava e as conduzia, bem acima de suas necessidades básicas. Apaixonadas pela vida e imunes à fantasia das crenças. Entre as quais eu me incluo.
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A série televisiva Cosmos foi a primeira grande obra de mídia centrada em temas científicos e históricos. Inovando o formato do que seriam simples aulas de ciência, contava com a intuição e o talento do escritor Sagan, que soube expor com clareza e encantamento um extenso e detalhado panorama do conhecimento humano, a ponto de criar um efeito transformador na vida das pessoas. Nas palavras do biólogo Richard Dawkins: “Todos os livros de Sagan tocam no nervo exposto do assombro transcendente monopolizado pela religião nos últimos séculos.” Entre as cartas que Ann Druyan, sua esposa, recebeu após a morte de Carl, algumas manifestavam gratidão entre depoimentos como: “Você me despertou.”
Leia mais sobre ciência e curiosidades: A simples (e espantosa) descoberta de Wegener

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