Profissão: astrólogo?
Por Marcelo Gleiser
Regimentar a astrologia em curso superior é uma volta à Idade Média, quando o natural e o sobrenatural se misturavam sob o véu do medo, da superstição e da ignorância
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover, EUA. Artigo publiado no caderno 'Mais!' da 'Folha de SP':
Durante minha recente visita ao Brasil, fiquei sabendo do projeto de lei nº 43 de 2002, de autoria do senador Artur da Távola (PSDB-RJ), que visa a regulamentar a profissão de astrólogo.
Tendo em vista que o senador foi membro de comissões especiais que elaboraram importantes leis e estatutos, incluindo a lei de defesa do consumidor e a lei de diretrizes e bases da educação nacional, confesso que fiquei muito surpreso e decepcionado com o presente projeto.
Ao ler a justificativa para tal proposta, minha decepção transformou-se em choque: o projeto propõe que a astrologia seja ensinada nas Universidades, incluindo graduação e pós-graduação, com currículo regulamentado pelo MEC.
Segundo o texto do projeto, a sua elaboração contou com 'pensamentos e caracterizações de autores ligados à práxis, mantendo-se o pragmatismo inerente a uma conceituação legal'. Aparentemente, nenhum cientista foi consultado.
Sem dúvida alguma, a astronomia deve muito à astrologia: já os babilônios, dois mil anos antes de Cristo, olhavam para os céus em busca de mensagens enviadas pelos deuses.
O céu, sendo a morada dos deuses, era sagrado. Os movimentos dos corpos celestes e das constelações eram interpretados como sendo a escrita divina, carregada de significado e prognósticos para nós aqui embaixo.
Portanto, para os babilônios - e todas as outras culturas que olhavam para cima em busca de mensagens e revelações -, os céus eram uma entidade sobrenatural, regida pela poder divino.
Como os prognósticos dependiam da posição relativa entre os planetas (os cinco conhecidos até então) e as 12 constelações do Zodíaco, quanto mais precisas as medidas das posições dos corpos, mais 'precisas' seriam as previsões.
Essa busca por uma precisão cada vez maior das posições planetárias levou ao desenvolvimento de modelos extremamente sofisticados, como o dos epiciclos e equantes de Ptolomeu, proposto em torno de 150 d.C., no qual as posições planetárias futuras poderiam ser determinadas com uma precisão equivalente a uma ou duas luas cheias.
Esses modelos combinavam a crença astrológica na existência de uma significado sobrenatural para os céus com os seus movimentos regulares, transformando o cosmo em uma máquina repleta de engrenagens as mais complexas.
O próprio Ptolomeu escreveu um tratado dedicado à astrologia, o 'Tetrabiblos', no qual dizia que a prática astrológica 'acalma a alma por meio do conhecimento de acontecimentos futuros, como se eles estivessem ocorrendo no presente, e nos prepara para receber com calma e equilíbrio o inesperado'.
Ou seja, o aspecto mais importante da prática astrológica é a sua capacidade de prever o futuro, para que se possa recebê-lo de forma calma e equilibrada. Na linguagem mais moderna, isso se chama 'calcular os trânsitos', usando as posições futuras dos planetas para prognosticar o futuro.
Santo Agostinho, no século 4º, condenou firmemente a astrologia, pois ela interferia no livre-arbítrio e na onipotência divina: se tudo está já escrito nas estrelas, nós não podemos optar pelo bem ou pelo mal e a fé em Deus se torna irrelevante.
A resposta oferecida pelos astrólogos de então, muito usada ainda hoje, foi que 'as estrelas não determinam, apenas sugerem'.
O ingrediente fundamental que estava faltando nos modelos de Ptolomeu e outros era a física, que descreve as relações causais que regem os movimentos celestes.
Quando Galileu, Kepler e Newton desenvolveram as bases da ciência moderna, descrevendo os movimentos celestes como sendo consequência da força da gravidade, a astrologia começou a se divorciar da astronomia: em um Universo regido por forças causais entre objetos materiais, não havia espaço para relações sobrenaturais entre corpos celestes e pessoas que violassem o conceito mais fundamental da física, a causalidade.
Ou seja, é impossível, segundo tudo o que conhecemos hoje sobre o Universo e as suas propriedades físicas, obter informações sobre eventos futuros na vida de uma pessoa lendo os céus.
Mais ainda, não existe nenhuma evidência quantitativa de que planetas e estrelas possam influenciar o comportamento de pessoas aqui na Terra. A astrologia não é uma ciência, é uma crença. O mesmo se aplica à quiromancia, à leitura de cartas de tarô, à numerologia, aos búzios.
Por que não regulamentar também essas profissões, ensiná-las nas Universidades? Isso não significa que cientistas sejam bitolados ou fechados para novas idéias. Muito pelo contrário: nós dedicamos a vida ao desconhecido.
Mas, em ciência, o processo de validação empírica é fundamental. Tudo bem que as pessoas gostem de ler o seu horóscopo no jornal ou ter o seu 'mapa astral' analisado por um astrólogo. Isso até leva a uma auto-reflexão, que pode ser muito positiva.
Tudo bem que alguém escreva uma tese sobre astrologia, por exemplo, sob o tema história das religiões ou arqueoastronomia.
Mas regimentar a astrologia em curso superior é uma volta à Idade Média, quando o natural e o sobrenatural se misturavam sob o véu do medo, da superstição e da ignorância.
(Folha de SP, Mais!, 28/7)
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