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quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Posto que...




Por Sérgio Rodrigues

‘Posto que é chama’: Vinicius bebeu antes de escrever isso?

Aprendi em meus estudos de português ao longo da vida (com gramáticas, professores etc.) que a conjunção ‘posto que’ tinha sentido concessivo. No entanto, praticamente todas as pessoas do meio jurídico (em que trabalho), até mesmo juízes, a utilizam com sentido explicativo. Para piorar, sempre recordo dos versos de Vinicius de Moraes: ‘Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure’. Teria o poetinha errado ao utilizar o ‘posto que’ como conjunção explicativa ou eu é que não compreendi o soneto? Afinal, embora o ‘mas’ indique oposição entre a primeira frase e a segunda (parecendo confirmar a utilização do ‘posto que’ como concessão), uma chama não é imortal – pelo menos até onde sei.

Em primeiro lugar, é muito provável que o poeta Vinicius de Moraes (1913-1980) tivesse, sim, tomado algumas doses de “cachorro engarrafado” – isto é, de uísque, que ele chamava de “o melhor amigo do homem” – quando escreveu sua obra-prima Soneto de fidelidade. Não se deve ver nisso, porém, nada além de um cálculo estatístico que leva em conta a baixa frequência de momentos de sobriedade em sua vida. No estilo ao mesmo tempo rigoroso e fluido do soneto, um dos mais perfeitos de nossa literatura, não se percebe o menor traço de embriaguez.

No entanto, Vinicius contrariou frontalmente a gramática tradicional com seu uso de “posto que” como conjunção explicativa (ou causal, dependendo do autor). O sentido dos versos é claro: o amor não é imortal, visto que é chama, isto é, por ser chama, mas o poeta deseja que, enquanto durar, tenha brilho infinito. Só que Vinicius optou por não usar o “visto que”, que, além de caber na métrica, agradaria aos conservadores da língua. Foi mesmo de “posto que”, uma locução conjuntiva controversa.

Os gramáticos tradicionais atribuem a “posto que” valor exclusivamente concessivo, o mesmo de “embora”, como na seguinte frase: “Gosto dele, posto que seja meio antipático”. Para eles, qualquer uso diferente é erro e pronto. O português brasileiro, porém, ignora há muitas décadas essa análise e insiste em empregar “posto que” com papel explicativo. Isso não se dá por ignorância, ou não apenas por ignorância: encontra acolhida entre falantes cultos e parece se basear numa análise alternativa da expressão. Regras mudam.

Nenhuma novidade nisso. Um exemplo de como o reino das conjunções sempre foi movediço é o uso que o padre Antônio Vieira e outros autores antigos faziam da conjunção “segundo” – hoje empregada apenas em papel conformativo, como sinônimo de “conforme” – com sentido causal: “Mais nascimentos havíamos mister, segundo são muitas as mortes”.

Deliberadamente ou não, Vinicius de Moraes, um dos mestres indiscutíveis do português brasileiro, tomou o partido da língua viva – o que no caso dele faz o maior sentido – e deu ao pessoal da linha dura gramatical uma dor de cabeça infinita (enquanto durar): se abonações literárias sempre foram as cartas mais valiosas de seu jogo, numa mesa de pôquer o Soneto de fidelidade seria um royal straight flush.

[Minha contribuição]

"Em nossa língua irmã - e talvez 'madre' -, no entanto, 'puesto que' refere-se a 'porquanto' - em português -; portanto, adequando-se perfeitamente ao sentido usado por Vinícius; assim com gosto e insisto em usar; até porque estou perdido entre estas duas línguas - além do inglês... Insisto, e insistirei - por exemplo - em manter 'estória' e 'história', distinção que considero essencial para separar um evento corriqueiro de um épico, como no inglês 'story' e 'history'... Mas assim caminha a humanidade e o estilo literário... Acentuando ainda, e por uma questão de pensamento lógico, que unir o verbo 'pôr', sinônimo de 'colocar', no particípio - posto, colocado -, com o pronome relativo 'que', denota inequivocamente o sentido de 'colocado que', 'dito que', i.e., 'porquanto'... Mas uns seguem tradições, e outros cultivam essencialmente a forma, enquanto outros pensam... Identifico-me com o último grupo, 'posto que', quero dignificar a minha existência..." 

Carlos Sherman 

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