FREUD ou FRAUDE?
O norte-americano Frank Sulloway mostra um novo Freud, ambicioso e avesso à metodologia científica
por Álvaro Pereira JR.
Um bombardeio inclemente sobre o edifício freudiano vem do Instituto de Tecnologia de Massachussetts, nordeste dos EUA. O historiador Frank Sulloway, do MIT, esquadrinhou os relatos de casos tratados pos Sigmund Freud (1856-1939) e concluiu: pelo menos 99% da teoria psicanalítica estão errados. O pouco que se salva, como o conceito de transferência, nada tem de novo - deriva da biologia do século XIX.
Através das lentes críticas de Sulloway, 44, desaparece o Freud gênio solitário, que erigiu uma ciência baseado em dados empíricos e uma heróica auto-análise. Surge o clínico ávido por propagandear sua capacidade de cura, sem pudor de manipular fatos, datas e recorrer a uma enganadora habilidade retórica.
À Folha, Sulloway recusou o rótulo de "basher" (o que bate, em inglês - por extensão, o crítico). "Eu não quero só bater. Quero esmagar". Seu ponto principal: os relatos de casos são os pilares da psicanálise. Se têm furos, todo o campo desmorona. O establishment freudiano refuta o argumento. O psico-historiador Peter Gay disse por telefone, de sua casa em Connecticut (nordeste dos EUA), que as teses de Sulloway "são típicas de sua maneira arrogante de escrever". Gay, 57, professor da Universidade Yale, acha que a psicanálise não se formou só com casos bem descritos, mas "com outros milhares", mal documentados.
Só que de acordo com pesquisador do MIT, nenhum estudo prova que a psicanálise "cura mais do que falar com o cachorro, com o canário, com um tio ou comigo, desde que eu não seja um completo idiota".
Dos seis casos que discute em texto para a última reunião da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS), Sulloway reserva acidez máxima ao do "Homem dos Ratos", supostamente a primeira cura freudiana. Em 1908, no 1º Congresso Psicanalítico Internacional (Salzburg, Áustira), Freud alegou ter "curado" o paciente de sua obsessão por roedores. Se fosse verdade, a cura teria surgido em três meses - muito menos do que os métodos psicanalíticos postulam. Uma semana antes do simpósio, Freud escrevera a Carl Jung que não tinha "caso completo que pudesse ser visto como um todo".Gay, autor da volumosa biografia "Freud, uma Vida para Nosso Tempo", garantiu não se lembrar da carta, que está na página 141 do livro americano "The Freud/Jung Letters".
O caso de Anna O. - clássico de histeria psicanalítica - não faz sentido, para Sulloway. Segundo ele, um artigo de 1987, da psiquiatra Alison Orr-Andrawes (da Universidade Cornell), prova que Anna O. tinha uma lesão cerebral. A causa de seus sintomas era não-psíquica.
A auto análise de Freud, quando ele teria descoberto a sexualidade infantil, é desmerecida pelo historiador do MIT, Sulloway afirma que Freud já falava em sexualidade das crianças dez meses antes de começar a auto-análise, em cartas para o médico Wilhelm Fliess, seu amigo de 1887 a 1904.
A amizade Freud-Fliess é um embaraço para os psicanalistas. As teses de Fliess (pai dos biorritmos) são hoje vistas como ultrapassadas, pseudocientíficas. Versão oficial: Freud precisava de um confidente para ajudá-lo na auto-análise. Qualquer um serviria - até Fliess. Para Sulloway, o intercâmbio intelectual entre os dois foi muito intenso e influente sobre Freud.
Os seis casos mais documentados:
Pequeno Hans:
O garoto de cinco anos tinha fobia por cavalos. Freud só o atendeu uma vez. Era filho de Max Graf, discípulo freudiano. Freud tentou explicação edipiana para o caso, ignorando o fator mais óbvio: um acidente de charrete que Hans assistiu.
Mulher homossexual:
Tratamento falhou. Para ela, homossexualismo não era problema. Só procurou terapia forçada pelos pais. A análise não passou da fase de avaliação do caso.Tratamento falhou. Para ela, homossexualismo não era problema. Só procurou terapia forçada pelos pais. A análise não passou da fase de avaliação do caso.
Daniel Schreber:
Achava que sua cabeça estava sendo comprimida, que o peito era esmagado. Freud o "analisou" a partit da autobiografia, concluindo que era homossexual de relacionamento problemático com o pai. Ignorou que as sensações de Schreber eram idênticas às experimentadas quando testava aparelhos de postura inventados pelo pai, ortopedista.
Homem dos Ratos:
Tinha medo obsessivo de ratos. "Curado" por Freud em poucos meses. Uma semana antes de anunciar a "cura" no 1º Congresso Internacional de Psicanálise, Freud tinha escrito a Jung: "Não tenho nenhum caso completo, que possa ser visto como um todo".
Homem dos Lobos:
Longo tratamento com Freud e outros. Ao todo, 60 anos de terapia. Obsessão por lobos. Jamais se curou, entrando em estágio avançado de paranóia.
Dora:
Censura contribuiu para o mito do herói fundador da psicanálise
O modus operandi que garantiu a mitificação de Freud, segundo Frank Sulloway: a destruição da história. Epígonos e exegetas empenharam-se fundo na censura de detalhes comprometedores - ao menos na visão de seus discípulos - do passado do psicanalista. A correspondência Freud-Fliess foi vítima preferencial. A primeira edição das cartas, sanitizada por Anna Freud e Ernst Kris, rivaliza com a Rádio Bagdá em falsificação histórica.
A frase "eu durmo durante as análises da tarde" , cândida confissão de tédio profissional, sumiu na edição (de 1950) da correspondência. Também volatilizou-se boa parte dos elogios que Freud fazia à atividade científica de Fliess - "Kepler da biologia", em referência ao revolucionário astrônomo. Se dependesse de Anna Freud e Ernst Kris, ninguém saberia também que, para Freud, as pesquisas sobre ritmos biológicos de Fliess - hoje desacreditadas - desvendavam "os mistérios do universo e da vida".
Conversas sobre as teses de Fliess que relacionavam o nariz com distúrbios genitais também foram expurgadas da primeira edição. Um caso especialmente chocante acabou omitido. Fliess achava que podia curar neuroses cauterizando um osso da cavidade nasal. Freud mandou que uma paciente sua fosse operada. Fliess esqueceu meio metro de gaze no nariz da moça, depois da cirurgia. A cavidade infeccionou. A paciente quase morreu de hemorragia.
De acordo com Sulloway, "em vez de admitir que o amigo tinha feito um sério erro médico, Freud atribuiu os sangramentos da mulher a uma necessidade histérica de amor e atenção". Essa história só apareceu na segunda edição das cartas, integral, de 1985.
O pesquisador do MIT qualifica a censura como peça-chave na solidificação do mito Freud-herói, gênio isolado. Sulloway ironiza a obsessão pelo segredo que domina os Arquivos Sigmund Freud. "Uma carta de Joseph Breuer (imagina-se o que ela possa ter de tão especial) deve esperar até o ano 2102 para ser examinada - 177 anos depois da morte de Breuer".
Para Sulloway, Freud foi o primeiro a cultivar a redoma de mistério em torno de si. Em 1885 e 1907, o psicanalista mandou para o lixo incontáveis manuscritos, diários, cartas e cadernos. Aos 28 anos, justificou seu rompante de defenestração: "Não poderia amadurecer ou morrer sem me preocupar com quem ficaria de posse desses antigos escritos...Quanto aos biógrafos, deixe que se preocupem, não quero facilitar demais para eles. Cada um deles estará certo em sua opinião sobre 'a formação do herói' e já antecipo vê-los perder o rumo".
Tanta pretensão em um jovem de 28 anos indica só uma coisa: vocação para o mito. Palavra de Frank Sulloway.
Biógrafo recente discorda das acusações
O biógrafo Peter Gay, da Universidade Yale, duvida que Anna Freud e Ernst Kris tenham censurado as cartas de Freud a Fliess (as de Fliess a Freud sumiram; Frank Sulloway diz que Freud as destruiu). No máximo admite que eles possam ter sido "zelosos demais, deixando de fora trechos desagradáveis ou dolorosos".
Incisivo, Gay chama de "modo ridículo de raciocinar" a tese de Sulloway de que houve omissões para preservar Freud de uma influência (Fliess) incômoda na ótica da ciência contemporânea. Sobre os motivos que levaram a cortes específicos, Gay comentou: "E daí? Não vejo que importância isso possa ter".
O professor de Yale contesta a idéia de que, se os relatos de casos têm falhas, a psicanálise, criadad a partir deles, se torna imprestável. Ele julga impossível que uma profissão tenha conseguido se estabelecer a partir de só cinco casos. Para Gay, a influência das observações de pacientes sobre a psicanálise foi menos crucial do que Sulloway supõe. "Quando os relatos de casos apareceram, a teoria já estava quase completa".
O historiador afirma ue boa parte das críticas a Freud vêm "dos próprios psicanalistas". Como exemplo, cita um livro dos anos 70 só com ataques à teoria freudiana da sexualidade feminina. Era uma coletânea de artigos da revista da Associação Psicanalítica Americana. Gay diz que ele mesmo foi um dos que apontaram falhas no relato do caso do "Homem dos Ratos". Segundo ele, as correções pouco mudariam o que Freud concluiu.
Na entrevista, Gay usou várias vezes frases do tipo "eu não sei", "é uma questão muito complicada". Desculpou-se, garantindo não estar "fugindo das perguntas". O historiador acabou não contestando a essência das críticas de Sulloway a Freud. Repudiou as aparentes certezas de seu rival em uma área ainda permeada pela dúvida.
*Publicado na Folha de São Paulo. 5 de abril de 1991.
Sulloway doutorou-se em história da ciência pela Universidade Harvard (EUA) em 1978. Um ano depois, publicou "Freud, Biologist of the Mind" assunto de capa na revista de cultura "The New Republic". Hoje ele é pesquisador no Departamento de Ciência, Tecnologia e Sociedade do MIT. Diz que já esgotou "todas as bolsas entre aqui e Júpiter", desde 1978. Antes do MIT, passou pelo Instituto de Estudo Avançado de Princeton e pela Universidade da Califórnia. De 1984 a 1989, teve bolsa da Fundação MacArthur, conhecida nos EUA como "a bolsa dos gênios".
Leituras sobre o caso Freud/Fraude:
- "Freud, Biologist of the Mind", de Frank Sulloway, Harper Torchbooks, 1983.
- "Freud, the Self-made Hero", de Frank Sulloway, na revista "New Republic", 25 de agosto de 1979.
- "The Case of Anna O.: a Neuropsychiatric Perspective", de Alison Orr-Andrawes, no "Journal of the American Psychoanalytic Association", vol.35, nº2, 1987.
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