A importância histórica do STF
07 de agosto de 2012 | 3h 10
Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo
Eu vi os dois primeiros dias do julgamento do mensalão. E, 'data vênia', vi que há no Tribunal alguma coisa nascendo nas frestas dos rituais solenes: os indícios de um fato histórico: o STF está mais ligado ao mundo real, mais atento à opinião pública (por que não?)
Mas, dava para ver um tenso alvoroço no plenário como na pré-estreia de um filme inédito. Tudo parecia ainda um atemorizante sacrilégio, como se todos estivessem cometendo um pecado - o delito de ousar cumprir a lei julgando poderosos. Será que ousarão contrariar séculos de impunidade, séculos de distância entre a Justiça e a sociedade?
Vi o frisson nervoso nos juízes que, depois de sete anos de lentidão, têm de correr para cumprir os prazos impostos pelas chicanas e pelos retardos que a gangue de mensaleiros conseguiu criar. Suprema ironia: no país da justiça lenta, os ministros do Supremo são obrigados a correr, andar logo, mandar brasa, falar rápido, pois o Peluso tem de votar e sai em setembro. E só há julgamento porque o ministro Ayres de Britto se empenhou pessoalmente em viabilizar prazos e datas. Se não, não haveria nada.
O STF parecia um palco armado: os advogados dos réus numa tribuna, a imprensa, convidados VIPs. Os advogados se movem em sincronia como discretos bailarinos de ternos, com expressões céticas ou quase cínicas, um tédio proposital nas caras, ostentando a tranquilidade profissional de pistoleiros bem pagos antes de sacar a arma no duelo.
Ali estavam os protagonistas: Joaquim Barbosa transido de dores, ardendo na pressa de emplacar esta revolução no STF, defrontando-se com a programada lentidão de seu inimigo principal, Lewandowski, o homem que levou seis meses para ler um processo escancarado havia sete anos, e que no início do julgamento deu-se ao capricho de ler o seu voto por uma hora e meia, conseguindo cumprir a estratégia de Thomaz Bastos e atrasar mais um dia no processo. E conseguiu irritar Joaquim Barbosa, que o chamou de "desleal". Lewandowski retrucou, revelando a intenção que lhe vai à alma: "pelo que vejo, este julgamento vai ser turbulento". Quando foi cantar o Gilmar Mendes, Lula disse que Lewandowski estava sob muita pressão e que o Joaquim Barbosa era um "complexado" - por quê? Porque é preto e está de coluna doendo? Ninguém, claro, assume o sutil racismo brasileiro, mas ninguém esquece que ele é preto; nem ele. A verdade é que Lula o nomeou achando que seria uma "ação afirmativa" para seu governo e que Barbosa lhe seria grato. Lula achava que podia influir no outro poder com esse gesto. Dançou também no seu 'alopramento'.
No voto de Lewandowski vimos seu desejo de deixar patente na TV que é resistente a pressões de nossa 'rasteira' opinião pública. Quis também exibir cultura jurídica cravejada de citações, criando um mecanismo de defesa preventivo que transmuta sua fama de lento em 'independência' minuciosa. O julgamento vai oscilar entre a pressa e a lentidão. Pelos freios e embreagens, a defesa dos réus se fará por meio de chicanas retardadoras, por atrasos programados, por bloqueios e 'questões de ordem' com cascas de banana.
Aí, começou a leitura da acusação do procurador-geral da República, que ouvi com um arrepio de orgulho, como se estivesse na Inglaterra diante de um sistema judiciário impecável. Seu relatório serviu como uma viagem no tempo, rememorando toda a chanchada deprimente que foi o escândalo do mensalão, sete anos atrás. Tudo reapareceu: cada malinha de dinheiro vivo do Banco Rural, cada cheque administrativo, cada mentira e negação. Será dificílimo contestar o relatório e o voto de Roberto Gurgel, pois ele exibiu o óbvio, a auto evidência dos delitos. Daí, o show de chicanas a que assistiremos.
Foi espantoso constatar também que os "malfeitos" dos mensaleiros foram incrivelmente "aloprados", trabalho de ridículos amadores, deixando pistas gritantes, dando bandeiras em todas as direções. Como puderam errar tanto, ser tão primários?
Pensei e vi o óbvio - lembrei-me dos velhos comunistas que eu conheci tão bem na minha revolução juvenil.
O povão era nossa boa consciência, o povão era nosso salvo-conduto para a alma pacificada, sem culpas - o povão era nossa salvação.
Nós éramos mais "puros", mais poéticos, mais heroicos. Ai, que saudades do comunismo e, como dizia Beckett: "Que saudades das velhas perguntas e das velhas respostas..." A 'verdade' era o simplismo; complexidade era (e ainda é, para eles) coisa de 'direita'.
Mas, como era bom se sentir superior a um mundo povoado de "burgueses, caretas e babacas", como eu classificava a humanidade. Daí, a explicação: para que se importar com os babacas? Podemos deixar pistas à vontade porque, como disse o Lula, "sempre foi assim". Passaram a "desapropriar" a grana da "direita" - ou seja, inventaram o roubo com boa consciência, para 'salvar' o povão com a grana do povão. Claro que isso foi apenas o "rationale" para justificar a 'mão grande', um estandarte ideológico para legitimar a invasão da 'porcada magra no batatal'. Claro que pegaram altos trocos, porque ninguém é de ferro. Só não contavam com as 'cobras criadas' do Congresso, como o Jefferson, que viram aqueles comunas folgados descumprindo promessas, tratando-os com descaso de heróis contra 'burgueses alienados e covardes'. Deu nas denúncias operísticas do Jefferson, um dos recentes salvadores da pátria. Por trás do mensalão há desprezo pela inteligência da sociedade.
Mas, muito mais grave do que a tradicional mãozinha nas cumbucas, mais grave que punhados de dólares na cueca ou na bolsinha, muito mais grave é a justificativa de que tudo não passou de 'crime eleitoral', quando se tratou de mais de R$ 100 milhões num roubo "revolucionário". Os mensaleiros se absolvem e justificam porque teriam uma missão acima da democracia "burguesa".
Portanto, o STF não está julgando apenas umas roubalheiras, mas a tentativa de desmoralizar a democracia para o benefício de um partido único. O PT quis usar o governo que "tomaram" para mudar o Estado brasileiro. O STF está julgando a preservação da República que lentamente se aperfeiçoa e este julgamento já é uma etapa de nossa evolução democrática.
Arnaldo Jabor
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