ASHERAH:
A Deusa Proibida
ASHERAH:
THE FORBIDDEN GODDESS
Ana Luisa Alves Cordeiro
Graduanda do Bacharelado em Teologia pela Universidade Católica de Goiás.
Assessora do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI).
Yahweh fazia parte de um contexto politeísta onde havia um panteão de Deuses e Deusas, sendo que provavelmente foi adorado ao lado de sua consorte, Asherah. Reconstruir a presença da Deusa Asherah na vida de mulheres e homens no antigo Israel é um esforço de, a partir de uma perspectiva feminista e de gênero, trazer elementos que nos ajudem numa maior aproximação do que foram os espaços religiosos e vitais deste povo. Esta reconstrução é algo necessário, uma vez que estamos diante de textos sagrados marcados pelo sistema patriarcal, onde há o domínio do pai e quiriarcal, onde há o domínio do senhor (Gossmann, 1997: 371-374). Sistemas que projetaram historicamente um Deus masculino, legitimando práticas e funções masculinas, com isso silenciando mulheres, suas representações sagradas, tudo aquilo que pudesse lhes garantir espaço e voz. Por isso, faz-se necessário a nossa reflexão,
voltar a um ponto anterior ao monoteísmo patriarcal, até religiões nas quais uma Deusa era a imagem divina dominante ou então era emparelhada com a imagem masculina de uma forma que tornava a ambas modos equivalentes de aprender o divino (Ruether, 1993: 46).
Carol Christ (2005: 17) ressalta que “re-imaginar o poder divino como Deusa tem importantes conseqüências psicológicas e políticas”, como caminho de desconstrução do pensamento que naturaliza a dominação masculina. Segundo Schroer (1995: 40), o culto à Deusa era exercido tanto por homens como por mulheres, mas veio sobretudo ao encontro das necessidades das mulheres, pois lhes oferecia mais espaço no âmbito religioso. Através de uma “hermenêutica feminista de suspeita”, método proposto por Elisabeth Schüssler Fiorenza (1992: 89), queremos “re-imaginar” Asherah a partir de uma análise exegética crítica ao patriarcado/quiriarcado presente nos textos bíblicos, reconstruindo a memória da Deusa a partir dos dados arqueológicos e identificando na literatura bíblica a relação conflituosa que se estabelece com ela.
As Origens do Monoteísmo no Antigo Israel
Antes de qualquer reflexão em torno da Deusa Asherah, é necessário primeiramente fazermos uma breve alusão sobre o que foi a constituição do monoteísmo no Antigo Israel, para então entendermos como este monoteísmo afetou a cultura politeísta da época, mais especificamente o culto e a imagem da Deusa Asherah.
Há uma grande problemática em torno do início do monoteísmo, são vários os apontamentos e as pesquisas. Frank Crüsemann (2001: 780) aponta a época do profeta Elias (cf. 1Rs 18,19-40) como o momento histórico em que se começa a falar da exclusividade do Deus de Israel, principalmente no embate com o Deus Baal e no processo de sincretismo onde Yahweh incorpora as características de Baal. Os escritos bíblicos do Primeiro Testamento teriam em si a tendência de mostrar, do início ao fim, a realidade do monoteísmo, “a proibição de se adorar outras divindades já é pressuposta em Gênesis e formulada claramente no Sinai (Ex 20,2)” (Crüsemann, 2001: 781).
Haroldo Reimer (2006: 115) aponta, sobretudo o século V a.E.C como o momento histórico marcante, em que Yahweh vai se constituindo como Deus único de Israel, desencadeando um “processo de diabolização de outras divindades”.
Num primeiro momento, a divindade Yahweh teria sido um elemento religioso que veio de fora do contexto cananeu. Nesta época, possivelmente era o Deus El que ocupava a cabeça do panteão divino. Yahweh passa a integrar o contexto israelita sem contudo negar a existência e diversidade de
outras divindades. No entanto, os conflitos religiosos começam a acontecer, sobretudo no Reino do Norte, no período que vai dos séculos IX a VIII a.E.C, com o Deus Baal, ocorrendo a transferência dos atributos da fertilidade de Baal para Yahweh, o que Crüsemann também aponta. Já no Reino do Sul, do final do século VIII até o final do século VII a.E.C,
a fé monoteísta javista é afirmada em um contexto nacionalista, na medida em que se pode retrojetar a idéia de nação para aqueles tempos. A diversidade religiosa passa a ser objeto de ações perseguidoras oficiais, buscando-se sempre a cumplicidade dos homens de Israel que devem denunciar quem se desvia do credo oficial afirmado desde Jerusalém (Reimer, 2006: 117).
Neste sentido, a afirmação da exclusividade de Yahweh acarreta um processo de “diabolização” da própria Deusa Asherah, onde textos bíblicos serão instrumentos de justificação deste processo monoteísta. Frente a essa exclusividade de Yahweh, será impossível a sobrevivência de qualquer outra divindade, além de que a ênfase em Yahweh será critério de afirmação do sacerdócio masculino perpetuando uma sociedade patriarcal (Reimer, 2006: 117).
Neste contexto, a existência de outras divindades masculinas e femininas foi sempre uma ameaça ao monoteísmo estabelecido, sendo que as reformas religiosas em Judá, de Josafá (870-848 a.E.C), de Ezequias (716-687 a.E.C), de Josias (640-609 a.E.C) e as legislações do Código da Aliança (Ex 20,22-23,19) e do Código Deuteronômico (Dt 12-26) agiram como instrumentos que visavam assegurar a fé monoteísta (Reimer, 2003: 968). O desenvolvimento do Monoteísmo e suas fases.
O pesquisador Haroldo Reimer (2003) aponta cinco fases do desenvolvimento do monoteísmo no Antigo Israel. A primeira fase seria marcada pelo sincretismo entre El e Yahweh, no qual El é uma divindade cananéia cujas características é criador da terra e pai dos deuses. A segunda fase, por volta do século IX a.E.C, seria marcada pelos conflitos com o Deus Baal. Baal era filho de El, cuja característica principal era a fertilidade. A terceira fase estaria na ênfase da adoração exclusiva a Yahweh. O profeta Oséias, no século VIII a.E.C, equipara a idolatria à adoração de outras divindades. Neste período acontece a reforma de Ezequias (2Rs 18,4), que mostra a remoção dos lugares altos e a destruição da serpente de bronze, Neustã, reforma legitimada legalmente através do Código da Aliança (Ex 20,22-23,29). A quarta fase remete à época de dominação assíria, com a reforma de Josias (2Rs 22-23), justificada legalmente pelo Código Deuteronômico, englobando uma série de medidas visando a exclusividade de Yahweh e sua centralidade em Jerusalém, do templo de Jerusalém teriam sido retirados utensílios feitos para Baal, Aserá e o Exército do céu; sacerdotes dos 'altos' foram depostos, a estaca sagrada (hebraico: asherah) foi destruída, cabanas onde as mulheres teciam véus para Aserá foram demolidas etc. Também os santuários do interior foram desautorizados e desmantelados. Houve, assim, claramente, uma concentração do culto a Yahveh em Jerusalém, com a conseqüente exigência da adoração exclusiva dessa divindade (Reimer, 2003: 982).
Cada vez mais, as reformas religiosas vêm carregadas de intolerância religiosa proibindo qualquer tipo de imagens de divindades, mesmo que de Yahweh. Esta fase teria repercutido imensamente no culto à Deusa Asherah, consorte de Yahweh. A quinta fase seria marcada pelo monoteísmo absoluto e estaria relacionada com o período do exílio. Esta realidade estaria clara em Is 45,5 “Eu sou Yahweh e fora de mim não existe outro Deus”. Gn 1 seria a afirmação do poder criacional de Yahweh diante do domínio babilônico ancorado na fidelidade à divindade Marduc. No entanto, o pós-exílio, época do domínio Persa e do retorno das elites sacerdotais exiladas na Babilônia, seria o
momento de maior afirmação do monoteísmo absoluto em Yahweh, bem como, a supressão de qualquer referência a outras divindades, sobretudo femininas. Toda a literatura bíblica produzida e finalizada neste período terá essa tendência exclusivista em Yahweh. Enfim, o monoteísmo em Israel traz em si um longo processo de elaboração e afirmação, que se absolutiza sobretudo em torno dos séculos VI e V a.E.C.
A presença da Deusa em Israel (Do Bronze ao Ferro)
Conforme a pesquisadora Monika Ottermann (2004), que traça o panorama da presença da Deusa em Israel, da Idade do Bronze à Idade do Ferro, no Oriente Médio, datando a Idade do Bronze Médio (1800-1500 a.E.C), a representação da Deusa é caracterizada como “Deusa-Nua”, destacando o triângulo púbico, emergindo também representações em forma de ramos ou pequenas árvores estilizadas, combinação que vem a ser denominada “Deusa-Árvore”. Na Idade do Bronze Tardio (1550-1250/1150 a.E.C), a Deusa-Árvore apresenta duas mudanças, aparecendo em forma de uma árvore sagrada flanqueada por cabritos ou como um triângulo púbico, que substitui a árvore. Neste período, já se nota a tendência de substituição do corpo da Deusa pelos seus atributos, em especial a árvore. Aparece,
na passagem do BM para o BT uma mudança decisiva no campo das figuras de material mais precioso: as Deusas Nuas foram substituídas em grande parte por deuses guerreiros como Baal e Reshef (...) o encontro dos sexos fica claramente relegado ao segundo plano e é substituído por representações de legitimação, luta, dominação e lealdade político-imperial (Ottermann, 2004: 5).
A Deusa continua perdendo representatividade na religião oficial, onde divindades masculinas ganham cada vez mais força, principalmente a partir de características dominadoras e guerreiras. Na Idade do Ferro I (1250/1150-1000), a forma corporal da Deusa-Árvore vai desaparecendo enquanto que formas de animais que amamentam filhotes, às vezes com a presença de uma árvore estilizada, ganham cada vez mais espaços na glíptica, significando a prosperidade e a fertilidade. A presença da Deusa fica relegada aos espaços de religiosidade das mulheres.
Na Idade do Ferro IIA (1000-900 a.E.C), início da formação do javismo as Deusas passam a ser simbolizadas por seus atributos. A forma vegetal da Deusa confunde-se com seu símbolo, a árvore estilizada, sendo que muitas vezes é substituída por ele. Entendemos essas imagens como representações da Deusa Asherah. Na Idade do Ferro IIB (925-720/700 a.E.C), Israel e Judá apresentam diferenças no âmbito simbólico. Os documentos epigráficos de Kuntillet Adjrud e de Khirbet el-Qom destacam um vínculo estreito entre Asherah e Yahweh, o que acima de tudo demonstra um contexto politeísta, onde se adoravam a várias divindades femininas e masculinas. Na Idade do Ferro IIC (720/700-600 a.E.C), a Babilônia derruba a Assíria e passa a dominar Israel e Judá. Neste período encontramos o símbolo tradicional da Deusa, a árvore e o ramo. Vários selos ou impressões de selos que associam símbolos astrais com árvores estilizadas foram encontrados na Palestina e na Transjordânia, o que reforça interpretações sobre a existência de um culto a Deusa Asherah ao lado do Deus Yahweh. É principalmente na forma de árvore estilizada que, ao longo de séculos, Asherah esteve presente em Israel. Mas é sobretudo na época pós-exílica que as vertentes políticas e religiosas dominantes vão excluir e proibir a presença de uma divindade feminina dentro do javismo (Ottermann, 2005:.52).
Evidências arqueológicas da Deusa Asherah
As primeiras evidências de Asherah aparecem em textos cuneiformes babilônicos (1830-1531 a.E.C) e nas cartas de El Armana (século XIV a.E.C) (Neuenfeldt, 1999:.5). Para o pesquisador Ruth Hestrin (1991: 52-53), informações importantes sobre Asherah vêm dos textos ugaríticos de Ras Shamra (Costa Mediterrânea da Síria). Nestes textos, Asherah é chamada de Atirat, consorte de El, principal Deus do panteão cananeu no II milênio a.E.C, sendo mencionada também como ‘Elat, forma feminina de El. Nos textos ugaríticos, Asherah (ou seja, Atirat ou ‘Elat) é a mãe dos Deuses, simbolizando a Deusa do amor, do sexo e da fertilidade.
Também foram escavados vários pingentes ugaríticos que retratam uma Deusa, provavelmente Atirat/ ‘Elat. A figura humana estilizada nestes pingentes contém o rosto, os seios e a região púbica e uma pequena árvore estilizada gravada acima do triângulo púbico. Em 1934, o arqueólogo britânico James L. Starkey encontrou o jarro de Lachish, datado aproximadamente no 13º século a.E.C, provavelmente ano 1220.
O jarro é decorado e contém inscrições raras do antigo alfabeto semítico. Na decoração há o desenho de uma árvore flanqueada por duas cabras com longos chifres para trás, que, segundo Ruth Hestrin, representa Asherah. Uma inscrição que segue pela borda do jarro tem sido reconstruída e traduzida por Frank M. Cross, como: “Mattan. Um oferecimento para minha senhora 'Elat”. Não se sabe quem é Mattan, mas está claro que ele faz uma oferenda para 'Elat, que é o feminino para El, chefe do panteão cananeu no II milênio a.E.C, equivalente ao pré-bíblico Asherah. Nota-se um dado importante, o nome 'Elat está escrito logo acima da árvore, representação de 'Elat/ Asherah. Há uma possibilidade deste jarro e seu conteúdo terem sido uma oferenda à Deusa (Hestrin, 1991: 54).
No entanto, foi no templo de Arad, no Neguev, ao sul de Jerusalém, que se encontrou fortes evidências de Asherah. No santuário interno foram encontrados dois altares diante de um par de pedras verticais, possivelmente lugar de culto a Yahweh e Asherah. Um outro altar foi encontrado no pátio externo do templo com tigelas dos sacerdotes e cinzas de ossos de animais queimados, no canto uma irmandade local e altares com pedras duplas (Discovery, 1993). Segundo Elaine Neuenfeldt (1999:.6), o templo é datado aproximadamente da época do Bronze Recente, entre o 10º e 8º séculos a.E.C., quando possivelmente a reforma de Ezequias o extinguiu (2Rs 18).
Em Khirbet el-Qom, ao oeste de Hebron, em 1967, outro arqueólogo encontrou um túmulo judaico da segunda metade do século VIII (Discovery, 1993), com uma inscrição na parede interior que Severino Croatto (2001:.36) traduz como:
1. Urijahu (...) sua inscrição.
2. Abençoado seja Urijahu por Javé (lyhwh)
3. sua luz por Asherah, a que mantém sua mão sobre ele
4. por sua rpy, que...
Segundo Hestrin, em 1975-1976, o arqueólogo israelita Ze’ev Meshel, em Kuntillet Adjrud, 50km ao sul de Qadesh-Barnea, na antiga estrada de Gaza a Elat, escavou uma pousada no deserto que continha várias inscrições. Controlado por Israel, este posto estatal encontrava-se em território de Judá, funcionando aproximadamente entre 800-775 a.E.C. No prédio principal, em sua entrada, duas jarras de armazenagem com desenhos e inscrições foram encontradas e identificadas como pithos A e pithos B. Na inscrição do pithos A se lê:
Diz... Diga a Jehallel... Josafa e...”:
Abençoo-vos em YHWH de Samaria e sua Asherah.
No pithos B se lê:
Diz Amarjahu: Diga ao meu Senhor: Estás bem?”.
Abençoo-te em YHWH de Teman e sua Asherah.
Ele te abençoa e te guarde e com meu senhor.
Neste pithos aparecem três figuras, duas masculinas retratos do Deus egípcio Bes e uma claramente feminina (seios em destaque) tocando uma lira. Ruth Hestrin (1991: 55–56), aponta ainda que em outra pintura egípcia, do túmulo do Faraó Tuthmosis III, está retratada uma Deusa na forma humana no tronco de uma árvore, apresentando alimento para o rei através do seio que é sustentado pelo braço, ambos saindo da árvore.
Willian Dever (Discovery: 1993) também aponta a dama-leão como uma forte evidência de que Asherah existiu como Deusa no início de Israel. No mundo antigo, o leão quase sempre acompanhou o Deus chefe. Em uma estela egípcia a Deusa despida em cima de um leão é chamada de Qudshu, que para William F. Albright e Frank Cross é o equivalente egípcio do ugarítico ‘Atirat/‘Elat e do bíblico Asherah. Em outra figura a árvore sagrada que representa Asherah é colocada em cima de um leão (Hestrin, 1991: 55-57).
Em 1968, o arqueólogo americano Paul Lapp escavou um outro artefato muito famoso em Taanach, datando ao final do 10º século a.E.C (Hestrin, 1991: 57).
Num dos quartos da instalação cúltica foram encontrados prensa de óleo, forma para fazer figuras de Asherah, sessenta pesos de tear e 140 ossos de articulações de ovelhas e cabras (Neuenfeldt, 1999: 7).
Um quadrado oco de terracota, aberto na base, composto de quatro níveis ou róis também foi encontrado. Conforme Ruth Hestrin (1991: 57-58), no rol inferior, uma mulher nua flanqueada por dois leões é mais uma representação de Asherah, Deusa-mãe, o que é similar á estela egípcia com Qudshu. No segundo rol temos uma abertura vazia no meio (provavelmente a entrada do templo) flanqueada por duas esfinges (corpo de leão, asas de pássaros e cabeça de mulher). O terceiro rol traz uma árvore sagrada da qual saem três pares de galhos, simbolizando a Deusa principal, Asherah, consorte de Baal e fonte da fertilidade, sendo flanqueada possivelmente por duas leoas. No rol superior temos um touro sem chifres, com um disco de sol em cima, o que simboliza o Deus supremo não só na Mesopotâmia e no panteão hitita, como também no panteão cananeu. O jovem touro representa Baal, principal Deus do panteão cananeu, que no II milênio substituiu El, cabeça do panteão. Em 1960, a arqueóloga inglesa Kathyn Kenyon descobriu centenas de estatuetas femininas quebradas em uma caverna perto do templo de Salomão em Jerusalém, para vários estudiosos essa descoberta sinalizou a existência do templo, para outros determinou o fim dos cultos pagãos pelo rei Josias, o qual ordenou a destruição de todos os vasos feitos para Baal e Asherah (Discovery, 1993).
Todas essas descobertas são fortes evidências da existência da Deusa Asherah. Parece claro que por determinado tempo essa Deusa teve mais espaço e representatividade na vida do povo em Canaã/ Israel, até ser taxada como a causa de todos os males que o povo estava sofrendo nas mãos de seus dominadores, em especial na época da dominação Babilônica, com toda experiência de destruição e exílio,
Aserá, na maioria do tempo venerada sob o corpo de uma árvore, era, inicialmente, a parceira de YHWH, mas com o crescente desenvolvimento do javismo como religião de um deus masculino, transcendente e único, ela foi taxada como sua maior rival e inimiga (Ottermann, 2005: 48).
A existência da Deusa Asherah remonta uma época de adoração a vários Deuses e Deusas, antes da ascensão do Javismo,
o culto da Deusa Árvore Asherah realizava-se, principalmente, em torno de uma árvore natural ou estilizada, ou seja, de um poste sagrado que podia estar ao lado de um altar seu ou de uma outra divindade, inclusive YHWH. Porém, seu culto foi realizado, de preferência, debaixo de uma árvore natural, nos chamados 'lugares altos', santuários ao ar vivo no topo das colinas e montanhas. Na maioria do tempo, uma imagem ou símbolo de Asherah estava também presente dentro do próprio templo de Jerusalém (Ottermann, 2005:.49).
É fato que a nova religião, centrada em Yahweh, vai se construindo e se impondo a partir da proibição a qualquer tipo de representação religiosa que não fosse Yahweh. De politeísta Israel passa a se constituir monoteísta, pelo menos na religião oficial. Provavelmente, adorações a Deuses e Deusas dentro das casas continuaram por longo tempo, como forma de resistência. A centralização no Deus único, Yahweh, que neste processo também se apropriou das funções de Asherah, custou caro aos outros Deuses e Deusas que compartilhavam da mesma cultura. Esta proibição atingiu a vida de homens e mulheres, que ali encontravam uma significação religiosa.
Seria ingênuo querer defender, neste contexto, uma sociedade no antigo Israel onde havia reciprocidade entre os sexos, pelo simples fato de existirem as Deusas. Pelo contrário, como reflete Simone de Beauvoir (2002:.91), o culto a Deusa se dá dentro de um contexto patriarcal, onde a perda de representação da Deusa atinge profundamente e principalmente ao universo religioso das mulheres, sendo que, o culto a Asherah vai sobrevivendo, até ser definitivamente extinguido e proibido, dos espaços, das mentes e dos corpos, de homens e mulheres que tinham em Asherah uma fonte de significação para a vida. É nesse contexto patriarcal, que Yahweh se torna uma forte
representação do masculino no sagrado, justificando a dominação masculina, tanto no âmbito social, econômico, político, como religioso. A religião oficial israelita absorve então uma identidade somente masculina, onde o feminino passa a ser relegado ao espaço particular das mulheres. Por isso, é extremamente importante uma memória da Deusa, em especial Asherah, consorte de Yahweh, não só numa tentativa de reconstruir a história do antigo Israel, mas principalmente dar espaço e voz às divindades femininas, que são uma possibilidade de identificação sagrada das mulheres, em busca de relações mais recíprocas e humanizadas entre os gêneros.
Deusa Asherah: Uma imagem a partir dos Escritos Bíblicos
Conforme Ruth Hestrin (1991:.50), Asherah é mencionada cerca de 40 vezes na Bíblia Hebraica, de três formas diferentes, ora como uma imagem que representa a própria Deusa, ora como uma árvore ou como um tronco de árvore, que a simbolizam.
Asherah, a Deusa Cananéia, na mitologia ugarítica era conhecida como “Senhora do Mar”, a esposa de El, chefe do panteão dos Deuses. No Primeiro Testamento ela aparece muitas vezes como esposa de Baal, sendo que na épica de Baal, Asherah cria os monstros que o devoram, se opondo à
construção de um templo para Baal (Mackenzie, 1984:.82).
O culto a Asherah foi muito popular em Israel e Judá. O rei Asa (912-871 a.E.C), que ficou no poder durante 41 anos em Judá, empreendeu uma restauração no culto a Yahweh e “chegou a retirar de sua mãe a dignidade de Grande Dama, porque ela fizera um ídolo para Aserá; Asa quebrou o ídolo e queimou-o no vale do Cedron” (1Rs 15,13; cf. 2Cr 15,16). O ídolo remete na palavra hebraica mifleset, a algum objeto de culto, provavelmente de madeira.
É interessante perceber que o culto se dá no palácio, em ambiente oficial (Croatto, 2001: 40-41). Já na passagem de 1Rs 16,33 “Acab erigiu também um poste sagrado...” demonstrando que Asherah também foi adorada em Israel. Em 2Cr 14,1-2, onde o rei Asa é lembrado como o rei que fez o que é “bom e justo aos olhos de Yahweh, seu Deus”, exatamente porque “eliminou os altares do estrangeiro e os lugares altos, despedaçou as estelas, destruiu as aserás...” ordenando o povo a praticar a lei e os mandamentos de Yahweh (cf. Jz 3,7).
Refletindo sobre os textos bíblicos que mencionam a Deusa Asherah teremos como pano de fundo o contexto que Silvia Schroer tão bem elucida,
os/as repatriados/as da Babilônia tinham integrado a questão da culpa de tal maneira que consideravam sobretudo o culto às deusas como motivo da ruína de Israel. Os expoentes deste grupo conseguiram banir de Judá quase completamente o culto às deusas dentro de um século e de apagar, o máximo possível, as memórias dele. Não é por acaso que o culto clandestino à deusa acontece no contexto de proibições misóginas e xenófobas de casamentos mistos. Todas as tentativas que seguem, de integrar a deusa pelo menos na linguagem teológica, são tentativas assentadas dentro do sistema monoteísta (Schroer, 1995:.40).
A partir desta perspectiva, de demonização da Deusa ou das Deusas, tentaremos constatar, nos escritos bíblicos, os impactos e as conseqüências que tal visão e atitude trouxe para a imagem da Deusa Asherah, que aos poucos passa a se tornar a Deusa proibida, a causa dos males e da ruína de
Israel.
A marginalização do feminino, das mulheres é um processo que também se dá e se sustenta por meio de escritos bíblicos justificadores de uma sociedade patriarcal, atuando assim no que podemos chamar de “desempoderamento” das mulheres a partir do sagrado, o que trouxe e traz fortes impactos nas dimensões culturais, religiosas, sociais, econômicas e políticas. A seguir, em dois momentos, analisaremos citações bíblicas sobre Asherah. Primeiramente as que mencionam Asherah como Deusa, depois as que aparecem com o nome “poste sagrado”, símbolo da Deusa.
A Deusa Asherah:
Há uma preocupação dos redatores bíblicos de excluir qualquer suspeita da Deusa Asherah ao lado de Yahweh, como sua consorte, de tal forma que os escritos bíblicos possivelmente foram redigidos com a intenção de apagar e demonizar a presença da Deusa. As inúmeras citações sobre Asherah demonstram seu peso no contexto religioso, o que faz dela uma grande ameaça ao monoteísmo javista em ascensão.
Em 1Rs 18,19, “pois bem, manda que se reúna junto de mim no monte Carmelo, todo o Israel com os quatrocentos e cinqüenta profetas de Baal e os quatrocentos profetas de Aserá, que comem à mesa de Jerusalém”, a referência a Asherah geralmente é considerada uma glosa. Quem incluiu esta
referência tinha claro que Asherah era uma Deusa e a coloca em paralelo com Baal (Croatto, 2001:.41).
O rei Josafá (871-848 a.E.C), filho e sucessor do rei Asa, deu continuidade à política de seu pai, “Yahweh manteve o reino em suas mãos” (2Cr 17,5), pois “seu coração caminhou nas sendas de Yahweh e ele suprimiu de novo em Judá os lugares altos e as aserás” (2Cr 17,6). Em outra passagem, Josafá após combater contra Aram, apesar de ferido, volta com vida para Jerusalém sendo aclamado por Jeú, o vidente,
deve-se levar auxílio ao ímpio? Amarias aqueles que odeiam Yahweh, para assim atrair sobre ti sua cólera? Todavia, foi encontrado em ti algo de bom, pois eliminaste da terra as aserás e aplicaste teu coração à procura de Deus (2Cr 19,3).
Ezequias (727-698 a.E.C), filho e sucessor de Acaz, é lembrado como o rei que “fez o que é agradável aos olhos de Yahweh”. Durante o seu reinado, após a celebração da Páscoa e da festa dos Ázimos é empreendida uma reforma do culto,
terminadas todas essas festas, todo o Israel que lá se achava saiu pelas cidades de Judá quebrando as estelas, despedaçando as aserás, demolindo os lugares altos e os altares, para eliminá-los por completo de todo o Judá, Benjamim, Efraim e Manassés. A seguir, todos os israelitas voltaram para suas cidades, cada um para seu patrimônio (2Cr 31,1).
Nesta época o Reino do Norte, Israel, já havia sido destruído, sendo assim, Judá, Reino do Sul, tornou-se o único espaço onde a identidade religiosa do povo de Yahweh poderia ser mantida. Foi nesse contexto que Ezequias promoveu uma extensa reforma religiosa e política, com intenções de
reunir o povo em torno de um só Deus e um só rei. Por isso, Ezequias é exaltado pelos redatores deuteronomistas como o rei que “fez o que agrada aos olhos de Yahweh” (2Rs 18,3). A reforma religiosa de Ezequias era baseada nas seguintes medidas: no combate a idolatria, na centralização do culto a Yahweh em Jerusalém e no cumprimento dos mandamentos. Tais medidas podem ter sido fundamentadas no documento trazido do Norte (Dt 12-26), que foi adaptado à reforma em Judá. Josias retoma 100 anos mais tarde este documento para empreender sua reforma religiosa e política (Gass, 2005: 78-83).
O rei Manassés (698-643 a.E.C), filho e sucessor de Ezequias, é lembrado pelos redatores como um rei que “fez mal aos olhos de Yahweh”, justamente porque reconstruiu os lugares altos que seu pai havia destruído, ergueu altares para os baais e fabricou postes sagrados, prestando-lhes culto.
No entanto, foi construir altares dentro do Templo de Yahweh (2Rs 21,7) a maior abominação para os redatores, que ao final dos escritos sobre Manassés relatam sua conversão a Yahweh. “Sua oração e como foi ouvido, todos os seus pecados e sua impiedade, os sítios onde havia construído os lugares altos e erguido aserás e ídolos antes de se ter humilhado, tudo está consignado na
história de Hozai” (2Cr 33,19).
O rei Josias (640-609 a.E.C) empreendeu uma reforma a partir de 622 a.E.C fazendo de Jerusalém o centro político e religioso de seu estado, destruindo os santuários de Yahweh que havia no interior e acabando com os cultos cananeus e assírios, que aconteciam no templo de Jerusalém e nos lugares altos. A reforma de Josias atingiu a liberdade religiosa popular, pois ordenou
a Helcias, o sumo sacerdote, aos sacerdotes que ocupavam o segundo lugar e aos guardas das portas que retirassem do santuário de Yahweh todos os objetos de culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá e para todo o exército do céu, queimou-os fora de Jerusalém, nos campos do Cedron e levou suas cinzas para Betel (2Rs 23,4).
Com isso, o culto exclusivo a Yahweh é reafirmado pela corte e pela classe sacerdotal de Jerusalém, exclusividade que custou caro à religiosidade popular (Gass, 2003:.134-138).
Josias ainda “demoliu as casas dos prostitutos sagrados, que estavam no templo de Yahweh, onde as mulheres teciam véus para Aserá” (2Rs 23,7). Aqui provavelmente se trata de vestidos feitos para a estátua de Asherah (Croatto, 2001:.41).
As intenções daqueles que redigiram tais textos parecem claras, ou seja, querem demonstrar que o “bom e justo” rei e povo é aquele que elimina qualquer resquício da presença de outros Deuses e Deusas em Israel, que o rei ou povo que “faz mal aos olhos de Yahweh” seria justamente aquele que aceita a realidade politeísta. Na citação a seguir além de derrubar, despedaçar e reduzir a pó os
altares, Josias manda espalhar este pó sobre o túmulo dos que ofereciam sacrifício a Baal e Asherah, ou seja, está explicíto que pessoas foram assassinadas. Aqui o nome Asherah também aparece no plural,
no oitavo ano de seu reinado, quando ainda não era mais que um adolescente, começou a buscar ao Deus de Davi, seu antepassado. No décimo segundo ano de seu reinado, começou a purificar Judá e Jerusalém dos lugares altos, das aserás, dos ídolos de madeira ou de metal fundido. Derrubaram diante dele os altares dos baais, ele próprio demoliu os altares de incensos que estavam sobre eles, despedaçou as aserás, os ídolos de madeira ou de metal fundido, e tendo-os reduzido a pó, espalhou o pó sobre os túmulos dos que lhes ofereceram sacrifícios (...) Nas cidades de Manassés, de Efraim, de Simeão e também de Neftali e nos territórios devastados que os rodeavam, ele demoliu os altares, as aserás, quebrou e pulverizou os ídolos, derrubou os altares de incenso em toda a terra de Israel e depois voltou para Jerusalém (2Cr 34,3-4.6-7).
Em Is 27,9 a Deusa Asherah é taxada de forma explícita como o pecado de Israel, a causa de sua iniqüidade e ruína, devendo ser banida por completo,
porque, com isto, será expiada a iniqüidade de Jacó. Este será o fruto que ele há de recolher da renúncia ao seu pecado, quando reduzir todas as pedras do altar a pedaços, como pedras de calcário, quando as Aserás e os altares de incenso já não permanecerem de pé.
Está claro que a ascensão do culto exclusivo a Yahweh não se faz de forma tranqüila, mas de forma violenta, a partir da intolerância religiosa, da destruição e da eliminação por completo do outro, que se torna uma ameaça.
Asherah como objeto cúltico:
A proibição “não plantarás um poste sagrado ou qualquer árvore ao lado de um altar de Yahweh teu Deus que hajas feito para ti, nem levantarás uma estela, porque Yahweh teu Deus a odeia” (Dt 16-21-22), conforme Croatto (2001:.42), revela que o objeto que simboliza Asherah é feito de madeira, que está plantado, ou seja, é um poste ou uma estaca e não uma estátua, que sua colocação “ao lado de um altar de Yahweh” transparece o caráter cultual do símbolo e principalmente a associação da Deusa simbolizada junto com o próprio Yahweh.
Em Jz 6,25 o pai de Gedeão possuía um altar de Baal que tinha uma Asherah ao lado, “aconteceu que, naquela mesma noite, Yahweh disse a Gedeão: Toma o touro de teu pai, o touro de sete anos, de uma segunda cria destrói o altar de Baal que pertence a teu pai e quebra o poste sagrado que está ao lado”. Conforme Jz 6,26.28, o 'poste sagrado' é queimado. Tal atitude provocou revolta, “os habitantes da cidade disseram então a Joás: Traze para fora o teu filho, para que morra, porquanto destruiu o altar de Baal e cortou o poste sagrado que estava ao lado” (Jz 6,30).
Acab (874-853 a.E.C) construiu um templo de Baal para sua esposa fenícia, “erigiu também um poste sagrado e cometeu ainda outros pecados, irritando Yahweh, Deus de Israel, mais que todos os reis de Israel que o precederam” (1Rs 16,33).
Os redatores deuteronomistas se queixam que na época do rei Joacaz (813-797 a.E.C) o culto a Asherah esteve presente “todavia, não se apartaram do pecado ao qual a casa de Jeroboão havia arrastado Israel; obstinaram-se nele e até mesmo o poste sagrado permaneceu de pé em Samaria” (2Rs 13,6). A ruína da Samaria é então explicada em 2Rs 17,16 porque “rejeitaram os mandamentos de Yahweh seu Deus, fabricaram para si estátuas de metal fundido, os dois bezerros de ouro, fizeram um poste sagrado, adoraram todo o exército do céu e prestaram culto a Baal”.
Manassés desfaz a reforma de seu pai Ezequias “reconstruiu os lugares altos que Ezequias, seu pai, havia destruído, ergueu altares a Baal, fabricou um poste sagrado, como havia feito Acab, rei de Israel...” (2Rs 21,3). Em 2Rs 23,6 o rei Josias tira Asherah de dentro do Templo de Jerusalém, transportou do Templo de Yahweh para fora de Jerusalém, para o vale do Cedron, o poste sagrado e queimou-o no vale do Cedron, reduziu-o a cinzas e lançou suas cinzas na vala comum.
Na citação de 2Rs 23,15b supõe-se que havia uma Asherah em Betel, muito antes de Josias, mas que este a “queimou”,
demoliu também o altar que estava em Betel, o lugar alto edificado por
Jeroboão, filho de Nabat, que havia arrastado Israel ao pecado, demoliu
também esse altar e esse lugar alto, queimou o lugar alto e o reduziu ao pó,
queimou o poste sagrado.
Conforme Croatto (2003:.43) o termo aserot (“os postes”) que designa o símbolo específico da Deusa Asherah é encontrado em poucos lugares. No plural, aparece geralmente no masculino (aserim). Nestas citações o termo já perdeu seu sentido original de símbolo da Deusa Asherah, num processo de “masculinização” que tenta apagar qualquer memória da Deusa.
Estes textos bíblicos nos ajudam a perceber o profundo processo de erradicação da Deusa Asherah, apagando qualquer resquício de sua memória, causando conseqüências drásticas à importância de Asherah na religiosidade do povo, bem como, no antigo culto ao lado de Yahweh. Os redatores bíblicos têm uma intenção nítida, contar a história a partir de Yahweh, único Deus, de tal forma que Asherah de consorte passe a ser sua rival, ou seja, a elite de escritores bíblicos tinham uma idéia daquilo que Deus deveria ser, único e masculino: Yahweh, negando assim toda a realidade politeísta em Israel.
Conclusões
Concluímos que Asherah possivelmente era uma Deusa e consorte de Yahweh no Antigo Israel e não um simples atributo deste. Várias descobertas arqueológicas e mencionadas nesta pesquisa nos ajudam na reflexão, destacando as de Khirbet el-Qom, em 1967 e a de Kuntillet Adjrud, em 1976, que traz a inscrição “abençoo-te em Yahweh de Teman e sua Asherah”.
A proibição da Deusa Asherah é fruto de um dado momento histórico de elaboração e ascensão do monoteísmo javista. A identidade judaica, após a drástica experiência do exílio babilônico e na tentativa de reorganização da nação, passa a se constituir em torno de três pilares: um só Deus, um só Povo e uma só Lei. A centralidade em Yahweh se torna um fator importante de credibilidade e legitimação da nova identidade nacional em formação, resultado das reformas empreendidas por Esdras e Neemias. A idolatria se torna então a culpa da ruína de Israel e neste contexto Yahweh é triunfante. Isso irá se refletir no conflito que os textos bíblicos demonstram em relação a Asherah e a outros Deuses e Deusas, bem como, em relação principalmente às mulheres estrangeiras.
Podemos claramente perceber que a elaboração e instituição do monoteísmo não se deu de forma democrática e muito menos pacífica. A partir de um contexto politeísta, a centralidade em Yahweh é um processo violento, de destruição da cultura religiosa do outro e da outra, de proibição do diferente, demonizando-o e tornando-o uma ameaça. Um processo nítido de intolerância religiosa.
A supressão do culto e da imagem da Deusa Asherah traz consigo conseqüências profundas para as relações entre os gêneros, afetando em especial aos corpos das mulheres, que tinham na Deusa uma possibilidade de representação do feminino no sagrado. A religião judaica vai se constituindo em torno de um único Deus masculino, legitimando historicamente uma sociedade patriarcal. Este poder divino imaginado somente como Deus afetou as mulheres, as crianças, a natureza, pois quase sempre partiu de um pressuposto de dominação, opressão e hierarquização das relações, tanto
humanas como ecológicas.
Afirmar Asherah como Deusa é polêmico, mas necessário à religião e à pesquisa bíblica. Dar voz a uma época em que Deuses e Deusas eram adorados, em que o próprio Yahweh foi adorado ao lado de Asherah, nos impulsiona a re-pensar não só as relações pré-estabelecidas entre homens e mulheres, bem como, a própria representação do sagrado estabelecida. Re-imaginar o sagrado como Deusa é re-imaginar as relações de poder, não numa tentativa de apagar a presença de Deus e sim de dar espaço ao feminino no sagrado, novamente o feminino não como um atributo do Deus masculino, mas como Deusa. Esta talvez seja uma grande contribuição da reflexão feminista, que nos desloca e nos provoca a re-imaginar o sagrado, como possibilidade de reimaginar a sociedade e as estruturas cristalizadas secularmente.
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Recebido em abril/2007.
Aprovado em junho/2007.
ISSN 1981-1225
Dossiê Religião
N.4 – abril 2007/julho 2007
Organização: Karina K. Bellotti e Mairon Escorsi Valério