Solidariedade
e Trapaça
Fernando Reinach*
Quando a comida estava
acabando, cada indivíduo começou a enviar sinais. Atraídos pelos sinais, aos
poucos todos se reuniram em um imenso conglomerado. Usando a energia que ainda
dispunham, selecionaram uns poucos membros do grupo e os encapsularam de modo
que pudessem sobreviver por muitos meses na ausência de alimentos. Terminado o
processo, morreram todos de fome.
A sobrevivência da colônia
dependia dos encapsulados. Vagando ao sabor dos ventos, eles hibernaram por
meses. Quando finalmente um deles encontrou alimento, voltou à vida, se
reproduziu, e criou uma nova colônia que explorou o ambiente até que a comida
começou a rarear.
Então tudo recomeçou.
Este é o ciclo de vida da
bactéria Mixococus xanthus, um dos organismos mais simples que apresenta alguma
forma de organização social. Os membros do grupo se comunicam, coletivamente
organizam uma estratégia de sobrevivência (a formação de esporos) e ainda
possuem uma forma primitiva de altruísmo, já que muitos se sacrificam para
garantir a sobrevivência das gerações futuras.
Faz alguns anos foi
descoberto que as sociedades de Mixococus xanthus sofrem o mesmo problema que
as sociedades humanas: o aparecimento dos trapaceiros, membros da sociedade que
se aproveitam do espírito de cooperação para obter vantagens pessoais. No caso
dos Mixococus o que ocorre é o aparecimento de bactérias mutantes incapazes de
formar esporos.
Quando cultivados
isoladamente, esses mutantes crescem enquanto houver alimento, mas quando falta
alimento eles não formam esporos e morrem.
Entretanto, quando essas
bactérias mutantes crescem no mesmo ambiente que os Mixococus normais, os
mutantes "obrigam" as bactérias a ajudá-los a formar seus esporos.
MALANDRAGEM CATASTRÓFICA
O pior é que nessas
condições os trapaceiros formam mais esporos que os Mixococus normais e, por
levarem vantagem, aos poucos vão aumentando seu número na população. O aumento
do número de trapaceiros sociais acaba provocando o colapso da sociedade: só
sobram trapaceiros. E, na falta de vítimas, também eles acabam morrendo.
O que foi descoberto é que,
muito raramente, os trapaceiros sofrem mutação e se convertem em
supercooperadores, bactérias que possuem um nível maior de solidariedade que as
Mixococus originais e, por produzirem muitos esporos, conseguem liquidar os
trapaceiros.
Quando os cientistas
seqüenciaram o genoma dos trapaceiros e dos supercooperadores, descobriram que
uma única mutação é responsável por restaurar o comportamento social e por
produzir indivíduos supercooperativos. Esse é o primeiro gene conhecido capaz
de "reabilitar" delinqüentes sociais.
Infelizmente a bactéria
Mixococus xanthus é um dos seres vivos evolutivamente mais distantes do Homo
sapiens e portanto é praticamente impossível que essa descoberta possa ter
alguma utilidade na reabilitação do grande número de trapaceiros e delinqüentes
que existem em nossa sociedade. Mas não deixa de ser interessante saber que, ao
menos em bactérias, o comportamento social é controlado diretamente pelos
genes.
Mais informações: Evolution of an obligate social
cheater to a superior cooperator - Nature vol. 441 pág. 310 2006.
*fernando@reinach.com,
Biólogo
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